#02 - Coleoptera
Dos clichês incontornáveis: a escritora escreve sobre o ato da escrita. Uma edição pra tentar explicar a mim mesma e aos leitores o que diabos estou fazendo aqui. Ou: besouros, besouros por todo lado!
Pós escrito: OOPS, I DID IT AGAIN. Recebi OUTRA notificação do Substack avisando que este texto excedeu o limite máximo de caracteres, e que é possível que chegue em alguns e-mails de forma truncada. Caso isso aconteça com você, é só clicar em “open in browser” ali no canto superior direito. Se a próxima edição vai ser mais curta!? Vou acender uma vela para Nossa Senhora da Edição.
Besouros são insetos pertencentes à ordem Coleoptera, a maior ordem de insetos existente, com mais de 400.000 espécies descritas até o momento, o que dá cerca de 40% do total de insetos e 30% de todos os animais. O que os caracteriza é a presença de élitros, asas dianteiras endurecidas, transformadas em uma espécie de carapaça protetora para seus corpos muito frágeis.
Nunca foi falta de assunto. Na verdade, é possível que parte do problema tenha sido o exato oposto: a abundância de assunto. O fato de que muita coisa me interessa e minha mente sempre tendeu a fazer conexões pouco usuais. A questão do foco. A questão da curiosidade versus o mundo da especialização, etc, etc. De todo jeito, a maior parte do problema - que, aviso logo, para que vocês se decidam já no segundo parágrafo se vão investir tempo de vida leitura nisso ou não1, é a minha relação tumultuada com a escrita - diz respeito à forma.
A forma foi e vai ser um problema de uma vida inteira, no melhor sentido possível. Às vezes no pior também. Então é claro que, quando decidi voltar a escrever, me peguei subitamente pensando no que é uma newsletter, no que é o fênomeno das newsletters, e no que é - ou o que eu quero que seja - a minha newsletter, especificamente. Por que me dar ao trabalho de compor este texto que está sendo lido agora e não, digamos, continuar escrevendo meus diários, ou voltar aos contos ensaios, contos ou à Crítica Literária Séria (em maiúsculas, claro). Ou, ainda, bancar a necromante criativa e ressuscitar um dos meus projetos de romance.
Mês passado eu senti a necessidade de escrever e compartilhar um texto sobre o luto que se transformou na primeira edição. Isso parece razão suficiente para abrir uma conta no Substack e apertar o botão de enviar para o meu antigo mailing do Tinyletter, sim. Não há grandes mistérios nesse fio de pensamento. Mas não é o suficiente para manter um novo processo criativo de pé - ou assim me gritou a minha neurose, pelo menos.
Então me pus a investigar o que é a minha própria escrita, o que é este espaço e o que pretendo fazer com ele. Digamos que, menos do que uma teoria da forma geral (deixo isso para os universitários) estava - e estou - em busca de uma poética pessoal. Vou pensando enquanto escrevo, e vou contando algumas histórias sobre a minha relação complicada com a escrita enquanto o faço.
Os besouros podem apresentar uma grande diversidade de formas, tamanhos e cores. Estão presentes em praticamente todos os ecossistemas do planeta, desde florestas tropicais até desertos e áreas polares. Alguns são considerados pragas agrícolas, enquanto outros têm importância ecológica significativa, desempenhando papéis importantes na polinização das plantas, reciclagem de matéria orgânica e controle de pragas.
I - Tiradentes
A primeira vez que precisei defender um texto meu eu não tinha nem altura pra brigar direito com a professora, porque a minha memória mais vívida do episódio foi o tanto que meu pescoço ficou doendo de olhar pra cima. A “peça literária” em questão foi uma redação sobre Tiradentes, que havia selecionada para participar de um concurso intermunicipal, ou algo assim. Eu devia ter uns 10 anos, e fiz um escândalo quando a professora de português pediu que eu passasse a limpo o texto na folha do concurso. Porque percebi que as correções que ela havia feito no meu texto não eram sintáticas ou ortográficas, mas estilísticas. E ela inclusive chegou a substituir um monte de palavras, que achava pouco condizentes com a minha faixa etária.
Eu tinha a mania de ler livros complicados para a minha idade e tentar encaixar as palavras recém-aprendidas no que eu escrevia? Tinha. Mas isso dava a ela o direito de editar o meu texto em vez de simplesmente escolher a redação de uma criança menos esquisita? Fica aí o questionamento pedagógico. Mas o bicho pegou mesmo por conta do vocábulo “vário”, que ela simplesmente circulou e substituiu por “variado”. E eu insisti fui na mesa dela, na frente da turma inteira e insisti que não, que era “vário” mesmo, ao que ela respondeu, sem a mínima paciência, “Gabriela, vário não existe, esta palavra está errada”.
Eu provavelmente não fazia ideia do que era um neologismo aos 10 anos, mas a palavra não apenas existia como eu lembrava de onde tinha tirado a dita-cuja; de um verso de O Operário em Construção 2 de Vinícius de Moraes, um poema longo que eu, por acaso, havia decorado (argumentar com criança petulante é outro nível de santidade, um salve para todos os leitores que são também professores, especialmente os do ensino fundamental), e me pus a recitar, argumentando “mas se não existe como é que está no poema?”. “Pois vamos resolver isso na secretaria” - e fomos.
Recontamos o caso na secretaria e a diretora, que gostava muito de mim, perguntou por que eu não reescrevia logo a redação usando as sugestões da professora, que só queria “melhorar” meu texto. “Porque aí não seria o meu texto.” Raciocínio perfeito, pequena Gabriela, você deveria ter parado por aí e em algum outro universo vocês poderiam ter conversado sobre o que é autoria. Porém, emendei: “E porque a professora nem sabe o que é vário.” Fim de papo. Uma outra redação foi escolhida no lugar da minha. Eu não sei se ela ganhou alguma coisa no concurso ou não. E eu nunca mais ganhei nada, exceto a merecida antipatia da professora pelo resto do ano letivo.
II - Misturinha
Ainda no Ensino Fundamental, mas umas séries depois. Essa anedota requer um contexto. A minha escola tinha um programa extracurricular de poesia. Era um projeto da rede pública, na verdade: ensinar poesia às crianças interessadas depois da aula. O conceito de poesia talvez fosse um pouco datado; jamais chegamos a adentrar o século XX direito, por exemplo, salvo exceções, e eu garanto que o Modernismo não foi convidado a subir a serra - para vocês terem uma ideia eu só fui descobrir o conceito de “verso livre” no Ensino Médio. No entanto, esse período da minha vida me deixou com sequelas interessantes: eu desenvolvi um ouvido ótimo para formas clássicas e até hoje sou excelente em escansão. A beleza de ser uma polímata, só que de habilidades completamente inúteis no mundo real.
Voltando. Era o dia do nosso encontro semanal de poesia e recebíamos um ‘poeta local’ que, por acaso, estava prestes a lançar um novo livro - numa vanity press, claro. Como tarefa daquele dia, ele pediu que a gente pensasse em como seriam os nossos próprios livros, e apresentássemos um projeto - com um poema - ao fim da aula. Vou poupá-los do meu “poema” não apenas porque tenho noção do ridículo, mas também porque tenho zero zelo documental, e todos os meus papéis vão mais cedo ou mais tarde para o lixo. Mas eu lembro bem do projeto, escrito no meu caderno verde do Terra Encantada (quem viveu sabe) que comprei em um passeio do colégio, porque estava especialmente orgulhosa dele.
Chamava-se Misturinha, como um esmalte que eu tinha - mas ressaltei que era um título provisório. E não era um livro de poemas, porque eu não tinha real intenção de ser poeta, mas no meu livro teria poemas e histórias e ideias e comentários sobre as coisas que eu pensava e sentia. Foi quando o poeta olhou para mim e disse que eu não podia, que eu tinha que escolher sobre o que eu queria escrever porque não era assim que os livros funcionavam e o livro que estava propondo não existia. “Mas é claro que o livro não existe! Ele não existe porque eu ainda não o escrevi!”
É claro que eu falei o que falei por pura bravata, e porque sempre fui boa em dar respostas rápidas. Mas fiquei me sentindo muito idiota, inadequada e profundamente burra depois. Eu não tinha repertório e ninguém a quem recorrer para descobrir que não apenas o poeta local tinha lido muito pouco para saber que é claro que existem vários livros assim, mas que a minha intuição estava no lugar certo: o que pode ser imaginado pode ser escrito.
III - O Modelo Dissertativo
Toda criança que gosta de escrever em geral foi incentivada por alguém na infância, e acabou acreditando que era boa nisso. Eu tive um monte de falhas na minha educação (especialmente porque a escola pública dos anos 90 era bastante deficitária) mas nunca tinha duvidado da minha capacidade de escrever. Até as primeiras aulas de redação do Ensino Médio.
No fim do Ensino Fundamental ganhei uma bolsa de estudos e fui fazer o Ensino Médio em uma escola particular no centro da cidade. De repente, minhas notas em redação despencaram. Dos 10 aos quais estava acostumada, 9,0 em um dia pouco inspirado, comecei a receber consistentes 4,0 a cada redação que entregava. A dor. A humilhação. A ferida narcísica no meio da puberdade. O dra-ma! O professor era um sujeito meio antiquado, de disposição ranzinza, sem tempo para desenvolver aquela persona de “amigo da galera” que perpassa o éthos da preparação para o vestibular, bastante rigoroso e muito preocupado com o português formal.
Arrastando minhas notas escarlates na testa (é engraçado agora, mas o sofrimento era REAL, quem nunca teve 15 anos?), levei quase um ano até ter ir coragem de ir conversar com ele, esperando, sei lá, ser mandada de volta para a alfabetização - o que eu já estava quase fazendo sozinha, para ser sincera. Contrariando todas as minhas expectativas apocalípticas, ele sentou comigo depois da aula para rever minha última redação e disse que não havia nada de errado com ela por si só, mas que o texto era “medíocre e engessado”.
Acho que foi a primeira vez que consideraram um texto meu em termos maduros, ainda que negativos. Olhei para aquele homem, que, àquela altura, devia ter mais de três vezes a minha idade, e quase chorei. Não porque ele tinha me criticado, mas porque ele tinha me criticado. Ele não estava só dando notas mecanicamente, contando erros de regência, bolos sintáticos. Ele estava lendo meu texto, ainda que não estivesse nada impressionado por ele. Mas tampouco eu estava impressionada. Eu concordava com a crítica. As minhas redações estavam mesmo uma droga. E eu sabia justamente o porquê.
“A culpa é da forma” - eu disse - “ a forma me faz sentir medíocre e engessada”. Ele havia insistido conosco ao longo dos meses que havia um fórmula muito específica para compor as dissertações, e aquilo estava me deixando maluca, porque eu não conseguia imprimir a menor maleabilidade ao corpo do texto. “Mas Gabriela” - e eu lembro disso até hoje com um carinho absurdo porque foi um grande conselho, disfarçado de desafio - “se eu passo tanto tempo insistindo nos modelos para o texto dissertativo é para auxiliar o aluno que não sabe por onde começar, e para que ele não se perca em sua argumentação. Você acha que pode fazer melhor? Eu nunca disse que era obrigatório usar.”
Na redação seguinte ganhei 7,0. No segundo ano, voltei a tirar 10,0 em sequência - mas uma vez um 8,5, com uma única nota ao pé da página, escrita em tinta vermelha: “não exagera”. Muitos anos depois, corrigindo malotes e malotes de redações de vestibular, me pego ainda pensando nesse professor quando, ocasionalmente, encontro um texto que parece fugir dos atalhos, citações, expressões e “componentes obrigatórios” que os cursinhos fazem os alunos decorar e reproduzir em escala industrial.
A alimentação dos besouros varia bastante. Muitos são herbívoros e se alimentam de folhas, frutas e madeira. Outros são predadores, caçando outros insetos, enquanto alguns são necrófagos, se alimentando de matéria orgânica em decomposição, como carcaças de animais.
IV - Cassandra e o dom da profecia
Eu tinha 18 anos e estava no primeiro período da faculdade, no Rio. Assustador era pouco para descrever a mudança drástica de cenário na minha vida, isso sem falar no quanto eu estava odiando o curso. Os primeiros períodos do currículo de Letras Português-Literaturas eram muito focados na parte do português e nada na parte das literaturas. Só não tranquei o curso porque não podia me dar ao luxo de fazer cursinho, e prometi a mim mesma que só voltaria para casa fechada num caixão.
Assim sendo, resolvi passar a maior parte do tempo possível na biblioteca, assistir apenas as aulas em que eu não podia forjar meu nome na lista de chamada, e frequentar assiduamente a única matéria que me interessava - Teoria Literária I, com uma professora que era poucos anos mais velha que eu e estava debutando em suas primeiras turmas como substituta.
Para o bem ou para o mal, não fosse aquela matéria eu provavelmente teria abandonado a faculdade. Teria continuado no Rio mas fugido com o circo, ou qualquer coisa que o valha. No entanto, aquela sala de aula foi a minha introdução a autores e temas aos quais eu perseguiria com afinco nos primeiros anos de graduação. Também foi um espaço que me permitiu imaginar e criar possibilidades, questionar obras, autores e estilos, mesmo com a pouquíssima bagagem que eu tinha à época.
Quando a balança do curso finalmente virou para o lado da Literatura fiz cursos excelentes, conheci grandes professores, aprendi a ler poesia de verdade, me meti com pesquisa, quebrei a cara, enfim, aproveitei, amei e odiei o processo, mas acho que nunca mais experimentei o encanto daquele primeiro contato - primeiro porque eu era muito jovem e muito boba, e a gente só perde a ingenuidade uma vez. Mas, sobretudo, porque a professora era mesmo muito especial no sentido de permitir abordagens mais ~excêntricas para lidar com textos literários.
Hoje a professora se tornou uma amiga querida, e esses dias resolvi contar para ela a história da minha primeira prova de Teoria Literária I. Para o meu espanto, ela se lembrava dessa prova, que está para fazer 20 anos. Eu mesma não me lembro do conteúdo, mas, segundo os relatos da minha amiga era “Platão com Oscar Wilde, e muito divertido, eu não ia esquecer”. Seja lá o que isso signifique, porque eu não vou conseguir refazer essa fiação agora de jeito nenhum. Enfim.
O que ficou guardado na minha memória: um bilhete no fim da minha folha dupla de almaço que era, ao mesmo tempo, gentil e apavorante: nele ela dizia ter gostado imensamente da minha prova, mas me avisava que era para não abaixar a cabeça para a academia, porque eu ia levar muita porrada lá dentro. Não foram essas as palavras, mas fica registrado o sentido violento da paráfrase.
Agora, vou dizer pra vocês uma coisa: se essa mulher não fosse uma professora brilhante que obviamente fez carreira ao longo dos anos eu mesma ia bater no Templo de Apolo e me oferecer como currículo para arranjar pra ela uma vaga como pitonisa porque, OLHA. Ao longo da década que passei na universidade tive lá minha cota de aliados e gente que me incentivou, é certo. Não teria chegado tão longe e permanecido tanto tempo por lá, sozinha. Mas o tanto que eu tomei de porrada e me enfiei em problemas… eu devia ter levado aquele bilhete mais a sério. Mas sabem como é com os prefetas que de fato falam a verdade. Não é nem que eles sejam de fato amaldiçoados, a gente é que ouve o que bem entende.
Fazendo um inventário ligeiro de memória, entre a graduação e o doutorado, meu texto foi acusado de: formal demais, formal de menos, pernóstico, debochado, pouco acadêmico, ensaístico e/ou literário (um insulto baixo no meio da Crítica Literária Séria), sem foco, irônico, desnecessariamente humorístico, fragmentário, pretensioso. Há verdade e exagero em tudo o que foi dito contra mim, para além do meu próprio processo de amadurecimento emocional e intelectual, que foi intenso e turbulento. Ainda foi uma década em que descobri o feminismo, me politizei e, se desde sempre nutri uma ojeriza instintiva por figuras de autoridade, comecei a ter vocabulário e estofo para lidar com o que antes era só um sentimento difuso. O que, em vez de facilitar, complicou muito mais a minha vida. Evidentemente.
Quando eu era mais nova - na minha adolescência e mesmo ao longo dos meus vinte anos - escrever era um prazer atrelado a uma culpa terrível. Para além da vergonha, do sentimento de deslocamento, e da frivolidade de gastar meu tempo com algo que me fazia imensamente feliz, mas que não me garantia qualquer retorno financeiro.
Quem escrevia eram os outros: os que tinham meios, tempo, recursos, contatos, berço. Os que cresceram com bibliotecas em casa, os que tinham um ‘teto todo seu’ - claramente jamais tinha ouvido falar na Gloria Anzaldúa, e se nunca tivesse olhado para além do cânone ainda estaria batendo cabeça e me sentindo péssima até hoje. Eu, no máximo, poderia contrabandear leituras no meu dia a dia, mas, escrever? Escrever mesmo? A sério? Fora do meu blog e deixando de lado o registro irônico e autodepreciativo que uso pra me proteger? Fora da faculdade? Fora dos trabalhos pingadinhos aqui e ali que apagavam o meu nome? Ah, não, jamais.
Jamais é um tempo muito longo, no entanto. E felizmente a gente envelhece, lê um monte, e deixa de bobagem.
V - O poema ensina a cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excedeaté à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós numa homenagem
póstuma.“O poema ensina a cair” - Luiza Neto Jorge
Penso na poeta portuguesa Luiza Neto Jorge enquanto revisito minhas histórias inglórias sobre a escrita. Há uma qualidade talismânica nesse verso “O poema ensina a cair”. É um mantra, uma pedra de toque, uma daquelas verdades que iluminam tudo. Um poema não salva, não te livra da morte, não te poupa da solidão, não traz de volta o seu amor em três dias, não requenta um amor de três décadas, nada disso. Um poema ensina a cair. Tão somente ensina a cair. Não é incrível?
Para mim os porquês da escrita nunca foram questão. Por que escrever? E isso lá é pergunta? Porque podemos. Porque o mundo é grande. Porque o mundo é pequeno. Porque o mundo é breve, mas às vezes parece eterno. Porque as pessoas são boas. Porque as pessoas são horríveis. Porque o mundo é novo e antigo. Porque o mundo está sempre acabando e começando. Porque somos seres feitos de histórias. Porque somos seres feitos de pulsões e curiosidades. E o mundo é tão interessante. Quando ele é grande e quando ele é pequeno. E as pessoas são tão interessantes. Quando elas são boas e quando elas são horríveis. Porque essas palavras me importam tanto e ao mesmo tempo não valem nada e serão logo esquecidas como eu como o mundo como tudo o mais. Porque os poemas ensinam a cair.
Como eu disse lá no começo, quando eu ingenuamente acreditava que esta seria uma newsletter breve: nunca foi falta de assunto. Inclusive, rascunhando temas sobre os quais poderia escrever edições futuras, preenchi páginas com planos que não sei se vou levar a cabo, mas que vão desde o nosso amor recém-adquiridos pelas orcas que afundam iates de luxo à epidemia de dança de 1518 em Estrasburgo.
As minhas questões hoje vão sempre margear o como. O único padrão que vejo emergir dessa bagunça toda é a minha necessidade contínua - a princípio inconsciente, mas cada vez menos, de tensionar todas as formas com as quais me deparo, procurar os pontos frágeis de ruptura dos gêneros e tentar fazer emergir do conhecido uma reação inusitada. Se eu fosse uma pessoa melhor, uma flor no asfalto. Mas, sendo como sou, provavelmente um riso em um velório.
Os besouros têm um ciclo de vida completo, que inclui os estágios de ovo, larva, pupa e adulto. A reprodução ocorre geralmente por meio da cópula, e a fêmea deposita os ovos em locais adequados para a sobrevivência das larvas. Alguns exemplos populares incluem o escaravelho, a joaninha, o besouro rinoceronte e o besouro rola-bosta.
VI - Coleoptera
Eu tenho uma última história. Quando era pequena passei por algumas obsessões normais de crianças dos anos 90: dinossauros, mitologia, arqueologia, ETs. E outras um pouco menos, como: insetos. Cresci em uma casa com um terreno amplo, muitas árvores, terra, mato e arbustos. Teve uma época em que eu dizia que queria ser entomóloga, para trabalhar em um Museu de História Natural.
Na época em que começamos a aprender sobre insetos na escola, eu já tinha uma coleção de revistas sobre o assunto3, e era especialmente fascinada por besouros, por causa da sonoridade do nome da ordem a que pertenciam: Coleoptera. A ordem Coleoptera tem esse nome porque faz referência aos élitros (do grego kóleos - estojo, ptéron - asas). Eu achava - e ainda acho, na verdade - muito bonita a ideia da parte exterior de um besouro ser um estojo para proteger a fragilidade do resto do corpo.
Querendo compartilhar com os meus coleguinhas o meu amor pelos insetos - o que poderia dar errado? - passei uma tarde inteira caçando besouros no quintal. Peguei vários completamente pretos, os mais comuns lá em casa, mas também os listrados, uns com o protórax vermelho e outros com o élitro esbranquiçado. Consegui até duas joaninhas, que são fofas e unanimidades. Coloquei-os em um vidro de maionese com a tampa furada por um garfo aquecido no fogão, uns matos à guisa de lanche para os pobrezinhos e levei-os na mochila no dia seguinte.
Foi o caos. Reações pra lá de exageradas de nojo. Parecia que eu tinha soltado as Dez Pragas do Egito na sala, sendo que o vidro permaneceu intacto. A professora, que no dia anterior tinha desanhado um besouro no quadro-negro, e feito a gente copiar, estava apavorada com o meu proto-terrário, e mandou que eu jogasse ‘aquela porcaria’ toda fora antes que eu contaminasse o colégio. A inspetora foi chamada, mas eu consegui implorar pra ela não me confiscar o vidro. Pedi que ela me deixasse soltar os bichinhos sem machucá-los.
O colégio tinha um pátio de terra batida, com uma vala cheia de bananeiras no fim do terreno. Como estávamos no tempo imediatamente antes do recreio, ela me deixou sair antes e disse que não queria mais ver o vidro na frente dela, que era para eu andar rápido com isso. Fui até a vala, abri o vidro e comecei a tentar soltar os besouros, que não pareciam muito entusiasmados com a liberdade (depois de terem sido enclausurados em um vidro abafado e sacudidos em uma mochila de criança por cerca de 12 horas, quem diria).
Tive que enfiar a mão dentro do pote para estimulá-los. Deixei que escalassem a minha mão. É uma memória muito vívida, passei muitos anos sonhando com isso: besouros subindo pelos meus dedos, fazendo cosquinha no dorso e na palma da minha mão muito pequena com suas patinhas, agitando as asas. Uma das joaninhas foi a primeira a sair voando. A segunda joaninha não resistiu às agruras do cativeiro e tive que pinçar seu corpinho do fundo do pote.
O último dos besouros a ir embora foi um pretinho comum, que se recusou a voar ou a pousar em um dos galhos que ofereci. Ficou na minha mão por um longo tempo, como se estivesse tão curioso comigo quanto eu com ele. Eu, que estive agachada durante todo o tempo que durou o processo de libertação dos besouros, senti as pernas cederem e finalmente sentei no chão de terra úmida pra brincar com ele - o que me rendeu uma bronca homérica pelas calças mais elameadas que o de costume. Passamos muito tempo os dois, na vala. Eu deixando o besouro vagar de uma mão para a outra, pela extensão dos meus braços, e de volta, e tudo de novo, como se não houvesse nada mais importante no mundo. E então ele abriu o estojo, muito devagar - eu poderia esmagá-lo com meus dedos, será que ele não percebia o perigo? - bateu as asinhas translúcidas e foi embora.
Em muitos sentidos eu ainda sou aquela criança. E essa newsletter aqui, acabei de decidir, é o meu pote de besouros.
🧭 Sincronicidades
(fora do texto, dentro do tema)
Iluminuras: Ganha uma mariola quem apontar quem primeiro teve a ideia de bordar asas de besouro em tecidos. E é assim que estou imediatamente devendo caixas e caixas de mariolas até o próximo dia de São Cosme e Damião, porque é claro que não foram os ingleses - que estavam apenas loucos de colonialismo & orientalismo no século XIX, apropriando-se de técnicas antigas e tradicionais de artes têxteis de países como Tailândia, Myanmar, China, Japão e, principalmente, Índia. Aos interessados, reuni alguns materiais bacanas:
Um artigo que mostra as origens indianas do processo e a moda “exótica” dos besourinhos no mundo anglófono.
Um vídeo do Victoria e Albert Museum que mostra de perto os detalhes de um destes vestidos.
Um vídeo do LACMA mostrando o processo de restauração de um cinturão indiano de 200 anos.
As newsletters dos outros: recentemente a Gaía Passarelli deu uma entrevista muito bacana para o podcast da Página Cinco. Ela e o Rodrigo Casarin conversam sobre o panorama das newsletters de criadores de conteúdo, jornalistas e escritores, focando especialmente no cenário brasileiro.
Para além de Gregor Samsa: 3 livros com insetos que fogem dos ‘pequenos notáveis’ canônicos.
Levantado do Chão, de José Saramago. Portugal, 1980 (Companhia das Letras) - A participação dos insetos aqui é pequena, mas intensa. O livro narra a saga dos Mau-Tempo, uma família campesina do Alentejo, através do século XX português, desde o início, passando por toda a ditadura salazarista até a Revolução dos Cravos em 1974. Insetos aparecem em uma cena, mas ganham um destaque fundamental: formigas que habitam os porões da ditadura são as únicas testemunhas - e, portanto, a elas cabe a voz narrativa - da cena de tortura de um personagem.
Estação Perdido, de China Miéville. EUA, 2000 (Boitempo, trad. de Fábio Fernandes) - Miéville, o escritor mais bem hidratado de sua geração imagina Nova Crobuzon, uma metrópole populada por diversas espécies inteligentes e em que ciência e mágica se misturam. No entanto, os interesses econômicos, os jogos políticos, o racismo e a boa e velha estratificação social, ah, esses parecem muito semelhantes à certa realidade que habitamos - Miéville, é, afinal, um marxista. O primeiro volume da série Bas-Lag acompanha as desventuras de um cientista humano que vive um relacionamento interespécies com uma artista boêmia-inseto (e faz uma bio arte cuja descrição é fascinante) e se envolve numa treta noir super conspiratória e rocambolesca. Enfim, Miéville escreve demais, e se você não conhece a obra dele, eu recomendo.
Pequena Enciclopédia dos Seres Comuns, de Maria Esther Maciel. Brasil, 2021 (Todavia) - Nem só de insetos é feito este livrinho, mas gosto tanto dele que seria um pecado não incluí-lo nesta lista. Acabei relendo-o por esses tempos, uma vez que decidi escrever sobre besouros, e escrevi um pouquinho sobre ele no Instagram.
🌐 Assincronicidades
(fora do tema, dentro da minha cabeça)
“I always preferred the company of older people because… they knew more than me” - Fran Lebowitz A melhor coisa que ouvi por esses últimos tempos foi a primeira temporada de Wiser than me, um podcast em que a atriz Julia Louis-Dreyfus (Seinfeld, Veep) conversa com mulheres mais velhas & mais ‘sábias’ do que ela. Julia, que já está com seus 60 e poucos anos, conta que teve a ideia ao assistir um documentário sobre a Jane Fonda, e se dar conta da enormidade e diversidade da trajetória da mulher - e como as histórias de mulheres, especialmente as mais velhas, são facilmente apagadas pela mídia. A primeira entrevistada é a própria Jane, e cada programa é um mundo inteiro: de moda à política, de ativismo ambiental à comédia, música e literatura -e até à arte de reclamar, porque uma das entrevistadas é a Fran Lebowitz. Ao final de cada programa, Julia ainda liga para a própria mãe para comentar sobre a entrevista do dia. Eu me senti abraçada por mulheres e experiências de mundo muito diversas, e estou recomendando fortemente para todas as minhas amigas - e aos meus amigos com algum juízo.
Stephen King cantando no chuveiro - ou quase. Ok, esbarrei nisso aqui por acaso, por causa de Wiser than Me. Falando da escritora Amy Tan, a Julia menciona que ela tem uma banda de rock que volta e meia sai em turnê e abre shows de bandas grandes. Fiquei curiosa e fui procurar pra ver se tinha algo no Spotify. Não tinha, porém achei um álbum duplo de 1998 chamado Stranger than Fiction, uma daquelas compilações em que os lucros vão para projetos sem fins lucrativos. O disco está cheio de pessoas que escrevem tentando - com graus variados de sucesso - uns covers meio manjados, mas o que vale é o inusitado da coisa. Para além da Amy Tan há nomes como Norman Mailer, Maya Angelou e Ken Follett, para além do já referido Stephen King, que aparece em mais de uma faixa. Se você alguma vez já se perguntou como o mestre do terror norte-americano performa no karaokê do chuveiro (?), aqui está a resposta - tire suas próprias conclusões.
Formas de ver o(s) mundo(s) - Entre newsletters, passei um bom tempo entretida com o volume Irmãs da Revolução, uma Antologia de Ficção Especulativa Feminista, organizada por Ann e Jeff Vandermeer, que a Aleph lançou esse ano. Eu gosto muito do trabalho do casal como editores e entusiastas de ficção especulativa, e seria maravilhoso se outras coletâneas deles aportassem por aqui mas, enquanto isso não acontece, o leitor brasileiro ganha aí trinta nomes para investigar, entre grandes conhecidos, já com traduções famosas e queridas (Octavia Butler, Ursula Le Guin, Angela Carter, Nnedi Okorafor), uma surrealista que felizmente está chegando só agora ao Brasil por este ou aquele misterioso caminho editorial cujos desígnios desconhecemos (Leonora Carrington) ou mesmo o nosso próprio produto exportação, made in Brazil (mezzo país pandêmico-bolsonarista, mezzo distopia do Terry Gilliam) - a edição brasileira vem com um conto extra (muito, mas muito bonito) da Aline Valek. Escrevi um pouquinho sobre a coletânea no Instagram, mas não consigo recomendá-la o suficiente.
Mas, claro, o reverso do heroísmo é muitas vezes triste; mulheres e criados sabem disso. Eles também sabem que nem por isso o heroísmo seja menos real. Mas as realizações são menores do que os homens pensam. O que é grande é o céu, a terra, o mar, a alma.
Ursula Le Guin - Sur
📜 Marginália da Marginália
(sugestões que recebi por e-mail, comentários do substack, redes sociais ou que me foram reveladas em sonhos)
Recebi MUITAS respostas na última newsletter (inclusive, gostaria de agradecer a todo mundo, mas, especialmente, quem tirou um tempinho para compartilhar comigo suas histórias de apocalipses cotidianos). Algumas das mensagens vieram com indicações de livros e filmes. Pensei que seria bacana abrir um espaço para publicar e comentar brevemente essa bibliografia colaborativa, se e quando ela continuar aparecendo, e à medida (lenta, pois a vida cobra) que eu for conseguindo processá-la. Sobre a primeira edição:
“É assim que sempre termina. Com a morte. Mas, antes, há a vida.” - O Marco Aurélio Nunes, via e-mail, me perguntou, entre outras coisas, se eu já havia assistido A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino. Foi um daqueles filmes que fez um sucesso danado na época, ganhou uma pá de prêmios, mas acabei deixando passar, e depois ele ficou eternamente na condição de “um dia verei”. Aproveitei a dica e resgatei-o das profundezas da minha lista do Mubi.
Jep Gambardella (Toni Servillo) é um escritor que não escreve. Conhecido por um único livro, que publicou quando tinha vinte e poucos anos e rendeu a ele prestígio e portas abertas na alta sociedade romana, ele passou as décadas seguintes desfrutando todo tipo de prazeres hedonistas com os quais a minha vã natureza precarizada pode apenas sonhar. No entanto, ao completar 65 anos, uma série de eventos o lança em uma espiral de perdas e reflexões desconfortáveis sobre a vida, a morte, a finitude, a perenidade da arte e o quanto a gente é bom em procrastinar as coisas pra evitar o sofrimento.
A fotografia transforma Roma em uma grande sedutora, e deixou meu coração comprimido diante de tanta grandiosidade em diversos momentos - há uma cena em que um turista japonês desmaia sob o sob da manhã, em frente a um monumento, enquanto um coral canta, e a câmera passeia por um cenário insuportavelmente belo. Acompanhar as desventuras de Jep e seus amigos é uma delícia, é evidente, mas, eu, que estou do outro lado do mundo, me sensibilizo com o turista, e possivelmente teria desmaiado igual, cortesia da minha pressão baixa aliada à Síndrome de Stendhal. E aquela cena final. Ah, ela me quebrou todinha.
A Sumaya Fagury não apenas me sugeriu a leitura de Ioga, de Emmanuel Carrère - falei sobre o livro brevemente no Instagram por esses dias - como me enviou um trecho belíssimo, que transcrevo aqui:
“Eu continuo a não morrer”
Minha amiga Ruth Zylberman me manda essas duas cartas breves que um menino de oito anos enviou à sua avó durante os expurgos de 1936 na União Soviética. Eis a primeira: Querida Babushka, eu ainda não morri. Você é a única pessoa que eu tenho no mundo e eu sou a única pessoa que você tem. Se eu não morrer, quando eu for grande e você for muito velha, vou viajar e cuidar de você. Seu neto, Gravrik.” E a segunda: “Querida Babushka, eu ainda não morri dessa vez de novo. Não é a mesma vez de que eu falei na minha última carta. Eu continuo a não morrer.”
(Tradução de Mariana Delfini)
A Marginália é uma newsletter artesanal, gratuita, escrita majoritariamente à mão, com intromissões ocasionais de algumas patas. Se você quiser apoiar meu trabalho, ainda estou pensando em como passar o chapéu, mas rascunhei umas ideias aqui. Obrigada pela leitura.
Eu super entendo quem olha para mais um texto meta sobre escrever e pensa “sem tempo, irmã”, porque, em larga medida, eu sou esta pessoa - a menos que o processo criativo da escritora ou escritor em questão me interesse bastante. Ao mesmo tempo, não sou iluminada o suficiente para escapar da maior parte das armadilhas egoicas, imagina se ia me furtar a essa.
O Operário em Construção, escrito em 1959, é, por um acaso, um dos poemas de infância de que me lembro bem, e sei recitar grande parte de cor. É basicamente uma tomada de consciência marxista do operário e, diante desse novo conhecimento messiânico, o patrão age como o demônio do Novo Testamento, na cena da tentação do deserto, tentando desencorajá-lo. É engraçado porque eu não fui uma adolescente com grande consciência política, só fui começar a juntar 2 + 2 depois de adulta, mas esse poema me impressionou demais na época. É ainda mais engraçado agora, quando parei pra reler, perceber que “vário” está justamente na estrofe em que o patrão está tentando subornar o operário. Três décadas depois finalmente notei a ironia da coisa. Toma essa, Professora! :)
Alguém mais se lembra de uma coleção de revistas publicada pela Editora Globo chamada Mini Monstros? As páginas centrais vinham com fotos em 3D aumentadas dos insetos pra você ver com um óculos que veio com o primeiro exemplar da revista, era o maior barato.
Essa é a minha mais nova newsletter espiritual
Ah, Gabriela, vc me deixa SEM CONDIÇÕES. Tu é mesmo a maioral!!!!!! Meu melhor vestido de gala não é roupa suficiente pra te ler.
O deleite que são seus textos. Pelamor. E hj, quando eu pensei que estava segura, chorei com a imagem e a metáfora da pequena (e GIGANTE!) você e seu pote de besourinhos! Essa espécie de lantejoulas da natureza! (E dos humanos meio bárbaros também...). Aff... Enfim, operando aqui em total falta de condições! Um beijo, MAIORAL!!!
Edit: Deusa abeonçoe a função de editar comentários pois eu já ia passando uma tremenda vergonhaaaa. Beijo de novo.