#01 - Depois, Antes, Agora
Sobre apocalipses cotidianos, a fronteira (e os limites) entre o silêncio e as palavras - e como deixar de assombrar os mortos.
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1 - Depois
Se você tivesse que escolher uma única memória, dentre todas as que você possui, para levar consigo para a eternidade, qual seria a sua escolha? Essa pergunta impossível vai assombrar qualquer espectador de Depois da Vida, filme japonês de 1998, dirigido por Hirokazu Kore-eda, um dos meus diretores favoritos - mais conhecido aqui no Brasil por Assunto de Família, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2018.
O filme se passa em uma espécie de triagem do pós-vida, um processo burocrático cujo ciclo completo dura sete dias. A cada semana um grupo de almas recém-falecidas é recepcionado pelos funcionários de um limbo que mais se assemelha a uma repartição pública austera. Durante os primeiros dias eles serão entrevistados diversas vezes, estimulados a contarem suas histórias, sempre a partir das interações com os funcionários (que então servem como um misto de conselheiros, psicólogos e assistentes sociais, mas que logo vão ganhar funções bem mais exóticas) para selecionarem a memória que gostariam de levar consigo para o além.
Escolher a tal memória é apenas a primeira parte do processo, no entanto, embora seja a mais importante. Quando a rodada de escolhas termina, começa um inusitado processo de produção: de repartição pública, o prédio se transforma em um estúdio de cinema dilapidado, porque todas as memórias escolhidas virarão filmes. Os funcionários se transformam em contrarregras, cinegrafistas, iluminadores, sonoplastas, fotógrafos, atores, maquiadores, cenógrafos e até mesmo artistas de efeitos especiais com recursos pra lá de limitados. No fim da semana, uma exibição das memórias em uma sala de cinema marca o fim do ciclo e, cada alma, ao ver seu filme, desaparece.
São tantos os personagens que é difícil pinçar os protagonistas. Há almas de todas as idades, e com as mais variadas experiências de vida, desde o “salary man” que trabalhou décadas em uma mesma empresa, e não vê qualquer memória significativa em sua existência banal, à adolescente que, imatura e impulsivamente, escolhe uma memória frívola para, logo em seguida, através do aconselhamento, mudar de ideia. Kore-eda começou sua carreira como documentarista, e esse olhar compassivo e curioso diante de modos diversos de existir está presente em toda a sua filmografia ficcional, mas fica especialmente evidente em Depois da Vida: dentre as vinte e duas almas há atores contando memórias roteirizadas, atores contando memórias reais e pessoas comuns contando memórias pessoais, em uma investigação muito semelhante sobre verdade e ficção que propõe o cinema de Eduardo Coutinho.
Exceto pelas histórias que contribuem diretamente para o eixo central do filme, é quase impossível saber quem está contando uma “memória real” e quem está contando uma “invenção”. O que não deixa de ser um perfeito espelhamento para uma das grandes questões temáticas do filme, uma vez que é praticamente impossível traçar a linha entre o “real” e a “invenção da memória”. O filme deixa claro que a memória é um construto, não a realidade em si; apenas uma interpretação possível dela, moldada por diversos fatores: nosso ponto de vista, emoções, perspectivas, o tempo, as lacunas e mesmo as necessidades narrativas do presente.
Em toda a nossa vida e experiência a gente pode até não conseguir precisar direito o que uma memória é, mas sabemos bem o que ela não é: o passado tal qual ele aconteceu. Quando uma das almas não consegue se decidir por uma memória específica, os funcionários dão a ela uma coleção de fitas de vídeo para que ela as assista, uma fita para cada ano vivido. Mas avisam logo que não é caso de preocupação se o que for assistido não corresponder às lembranças guardadas. As fitas com a gravação “da vida real” são usadas apenas como guia, para que a alma possa escolher a sua memória significativa.
E é interessante notar o contraste entre as imagens capturadas nas fitas e as memórias que serão reproduzidas em filme durante a semana. Nas fitas a vida é filmada por uma câmera estática, as cenas são monótonas e pálidas. Já as memórias das almas… bem, são cinema. Os funcionários fazem o possível para agregar todo tipo de valor às imagens que produzem. Roteiro, sensações, emoções, profundidades, estéticas, símbolos. É um processo minucioso.
O resultado não tem nada a ver com reconstruir objetivamente o passado, mas com oferecer uma perspectiva possível dele, filtrada pela percepção da alma, em um processo criativo. Filmes e memórias são artificiais. Toda arte é artificial, é claro, não preciso ficar aqui dando aula de prefixos. Mas isto não quer dizer que não estejamos lidando, nesse caso, com uma tentativa absoluta de sinceridade.
Cada alma acaba se tornando diretora de sua própria memória que, ao fim das contas, é uma ficção. Uma ficção pessoal, subjetiva, intransferível, mas uma ficção, uma fagulha do que aquela alma específica considera como importante na experiência humana. Há uma alma, por exemplo, que insiste em reviver uma memória de quando tinha apenas seis meses de idade, deitado no berço, sendo banhado por um raio de sol. É memória ou uma ficção construída ao longo da vida, uma imagem repetida tantas vezes na mente, recontada a tantas pessoas que se torno verdade? Não importa.
Outras memórias são mais factíveis, e ainda assim prosaicas: os mundos criados por Kore-eda geralmente o são, os menores gestos são os mais importantes, há beleza na sucessão contínua de estações e no estabelecimento de uma rotina. Há uma cena em um bonde, uma menina dançando para o irmão, um piloto voando pela primeira vez entre nuvens recriadas com algodão e arame. Há casais se reecontrando em pontes e crianças brincando em jardins.
Mas há também uma alma que se recusa a escolher, porque teme que uma única memória não seja suficiente para dar conta da individualidade dela. É um rapaz jovem e combativo, vinte e poucos anos, uma dor de cabeça desde o primeiro dia para os funcionários. Incapaz de levar o processo a sério, decidido a não escolher nada, a recusar-se para manter-se inteiro. E ele não está errado. Um ser humano é a sua coleção de memórias. Uma única memória não é um indivíduo, mas tão somente uma entrada em um grande catálogo de experiências. Talvez seja por isso que este mesmo personagem, ao perguntar se todos os mortos, bons e maus, justos e ímpios vão parar no mesmo lugar, e se todos têm direito a uma memória. Os funcionários garantem que sim, todos, sem exceção. A cosmogonia de Kore-eda não é clara, mas gosto de pensar que sim, é justamente porque o Grande Catálogo da Humanidade necessita de todos os tipos de memórias.
Eu volto a este universo com alguma frequência mas, dessa vez, foi por causa de uma coincidência inusitada. Estava zapeando um streaming, entediada, em uma noite qualquer, e acabei assistindo um filme que, definitivamente, também havia assistido Depois da Vida
2 - Antes
Nove Dias, filme norte-americano de 2020 dirigido pelo brasileiro Edson Oda (atualmente no catálogo HBO Max), também se passa em um espaço de triagem de almas. Mas, desta vez, no ponto oposto da “cadeia de produção”: estamos acompando o processo do pré-vida. A metáfora industrial não foi jogada aqui à toa: se é verdade que um filme assistiu o outro com muito cuidado - e bastou uns dez minutos para que eu o pausasse, e fosse procurar uma entrevista em que Oda não apenas reconhece a influência de Kore-eda em sua obra, mas pensa no próprio filme como uma espécie de prequel de Depois da Vida - também é verdade que a hollywoodização da ideia mecanizou e, eu diria mais: privatizou o processo. Às tantas me peguei pensando: mas gente, o lost in translation acabou desembocando na lógica liberal, não é mei bizarro? Mas estou me adiantando. Vejamos.
Um homem solitário, em uma casa solitária, no meio de umas paisagem desértica, é responsável por monitorar a vida de um grupo de seres humanos na Terra, observando-os através de televisões antigas, e gravando suas vidas em fitas de VHS. Quando a existência de uma dessas pessoas chega ao fim o monitor se apaga, e uma “vaga” fica disponível. Um “processo seletivo” é aberto, e, no deserto, almas aparecem, prontas para concorrerem à “maravilhosa oportunidade de viver”. A seleção dura os nove dias do título e os candidatos rejeitados - assim como os currículos de qualquer banco de talentos de empresas de RH - desaparecem para sempre.
Acompanhamos um desses processos de seleção, após uma das mulheres na Terra se suicidar, de forma completamente inesperada para o observador, e vemos como ele lida com os novos candidatos, os seus próprios traumas e a presença de uma alma que, o tempo todo, tensiona as regras do jogo, fazendo com que o homem reavalie a sua própria vida - a pregressa e a que leva no momento.
Winston Duke é Will (não vou sequer entrar no mérito da escolha desse nome em inglês porque eu me re-cu-so), o observador/funcionário de RH do além. Ele recebe o apoio de Kyo, vivido por Benedict Wong, um assistente que funciona como o fiel da balança, mas não pode fazer a escolha por si só uma vez que, ao contrário de Will, nunca esteve de fato vivo. Juntos, eles ainda fornecem um “prêmio de consolação” às almas descartadas, prêmio esse que não está previsto, mas é ideia do Will, e foi retirado totalmente de Além da Vida: eles tentam recriar, com truques cinematográficos limitados, não uma memória, mas uma das cenas que as almas tenham assistido pela tela, e gostado particularmente.
O elenco ainda conta com outros nomes conhecidos do cinema e televisão gringos, como Tony Hale, Bill Skarsgard e Zazie Beetz, cujo carisma luminoso parece ter sido canalizado para um modelo de personagem que eu achava que havia caído em desuso lá pelo meio dos anos 10, mas pelo visto não - a manic pixie dream girl. Os atores vendem o filme, especialmente o trio Duke, Wong e Beetz, e certamente mereciam um pouco mais de nuance do texto, que parece te pedir o tempo todo para que você se atente às belezas e ao milagre da vida. Calma, caras.
É claro que tudo que estou dizendo até agora é “em comparação a” - o que talvez seja um pouco injusto (não muito), porque meu ponto de partida é um filme que adoro, assisti várias vezes e sobre o qual penso há muitos anos. Me pergunto se me sentiria da mesma forma assistindo Nove Dias se jamais tivesse ouvido falar em Depois da Vida.
A resposta é: provavelmente não. Como tenho um ponto de comparação, consigo ver com clareza o exagero, o transbordamento, a incontinência emocional que pesa em Nove Dias, incluindo a catarse final, com um poema declamado aos gritos - poesia ainda por cima, sim, alô polícia platônica, chega mais! - que não nego que tenha me feito lacrimejar. Isso sem falar na trilha sonora especialmente manipuladora que ficou a cargo do Antônio Pinto, e ela sozinha parte meu coração em dois, com suas cordas tristes - e que estou ouvindo compulsivamente desde então. Caso você não tenha ligado o nome ao compositor, este cidadão é responsável pela trilha de Central do Brasil.
Se esse combo de golpes baixos não costuma me incomodar em outras produções norte-americanas (mas eu chorava ao final de cada episódio de O Toque de Um Anjo mesmo sem ser uma pessoa religiosa, então assim, TALVEZ eu não tenha moral pra falar de tear jerkers), não fosse a referência direta ao mundo de Kore-eda eu sequer teria registrado este filme. Ele teria passado por mim como era a minha intenção, a princípio: algo para me distrair em uma noite qualquer.
Assim como em Depois da Vida, a cosmogonia de Nove Dias não chega a ser explicada, mas, no primeiro filme, a proposta de oferecer uma única memória a todas as almas, sem distinção, é desindividualizante mas também é justa, porque todo tipo de experiência acaba compondo o que chamei de Catálogo da Humanidade. Por outro lado, aqui parece existir uma perversão dessa ordem, em favor de uma hierarquia incompreensível. Por que um único homem e seu assistente são responsáveis por escolherem uma alma, que nasce com sua subjetividade formada, com gostos, predileções, tendências, anseios, em detrimentos de todas as outras, que serão sumariamente eliminadas da existência, ou, no caso, da antessala da existência?
É claro, uma outra leitura possível, e interessante, é a ênfase no caráter arbitrário de todas essas decisões. Desde quem escolhe o departamento de RH a como funciona essa seleção pela alma mais apta a viver (?). Desde as razões que levam alguém ao suicídio à insistência por viver diante de um mundo de dor. O próprio Kyo se pergunta em uma cena se não haverá pessoas encarregadas de observá-los, e outras, encarregadas observar os observadores, e assim ao infinito. Vai saber. É preciso então, dentro dessa lógica, lidar com a aleatoriedade do universo e, diante da “maravilhosa oportunidade de viver”, bem, assinar a carteira e torcer para que haja benefícios embutidos.
Viver e morrer, como bem o sabemos, dá um trabalho danado.
Impossível não puxar Ikiru para esta conversa, nem que seja pela mera confluência de morte & burocracia e busca de sentido em meio ao caos. Dirigido por Akira Kurosawa em 1952, Ikiru (Viver, em japonês) conta a história de Kenji Watanabe - interpretado por Takashi Shimura, um dos grandes colaboradores de Kurosawa ao longo dos anos - um funcionário de um departamento burocrático do governo. Durante uma consulta médica ele descobre um câncer inoperável, e que tem apenas alguns meses de vida.
Após o choque, o desespero, a depressão e até uma ou outra indulgência hedonista (pros padrões de um respeitável funcionário público, é claro) ele decide finalmente encontrar um significado para o tempo que ainda tem sobre a terra, e o faz a partir da navegação de um labirinto burocrático para construir um pequeno parque infantil.
Um homem que passou a maior parte da vida trabalhando em um escritório, como o “salary man” de Depois da Vida, mas que, ao contrário dele, quando confrontado com a iminência do fim decide fazer algo a respeito. A “batalha” que ele escolhe, o parque infantil, parece tão frívola e aleatória, mas, para Watanabe, torna-se um símbolo, para além de ser uma marca concreta no mundo, mais sólida do que carimbos, tintas e papéis.
A construção do parque é a realização de um sonho coletivo, há muito postergado, uma vez que ele havia sido prometido à comunidade local há anos, mas nunca construído. Foi preciso que um funcionário com 30 anos de experiência e conhecimento estivesse morrendo de câncer, tivesse um momento de iluminação sobre a natureza efêmera da vida e sua responsabilidade diante do coletivo para que as crianças do bairro tivessem um escorregador e três balanços por algum tempo, afinal de contas espaços públicos podem ser tão frágeis quanto a vida humana. As coisas são assim. Arbitrárias.
3 - Agora
“Quem me dera acordar numa clara manhã tranquila e ter a sensação de estar começando mais uma vez a viver (…)”
Anton Tchékhov - Tio Vânia (Em “Quatro Peças”)
Esta é uma foto anterior ao apocalipse. Foi tirada no ano da morte do meu avô, e representa uma cena muito comum do nosso cotidiano quando eu estava em Petrópolis: estávamos voltando com o pão da padaria para o lanche da tarde. A casa que ele construiu, nos anos 60, fica em bairro suburbano, ao fim dessa ladeira, loteado majoritamente por operários de fábricas vizinhas e trabalhadores da Estrada de Ferro Leopoldina, como ele, mecânico de locomotivas. Tenho uma memória parcial desse dia, porque houve tantos como esse, nos quais o acompanhei em caminhadas semelhantes; conversando, tomando sol, passando tempo juntos, rindo das piadas que ele contava, fofocando sobre os vizinhos.
Eu não procurei esta foto: ela apareceu para mim em um lembrete de aplicativo, “nesse dia, há seis anos atrás…”. Nesse dia, há seis anos atrás, o apocalipse, na verdade, os últimos apocalipses da minha vida não haviam ainda acontecido. Porque os apocalipses ocorrem o tempo todo, em diversos lugares do mundo e períodos históricos. Isso sem contar os pequenos apocalipses cotidianos, pessoais e intransferíveis. Tudo estava bem, fazia sol, eu e meu avô íamos tomar o café da tarde. Essa definitivamente seria uma das minhas memórias candidatas se eu estivesse estivesse diante do dilema de Depois da Vida.
Decidi voltar a escrever por causa de algo que minha psiquiatra me disse: “parece que é você que está assombrando todos esses mortos”. Depois, em conversa com uma amiga, comentei que havia achado a ideia muito interessante do ponto de vista literário, não fosse pelo fato de que ela estava me inserindo como protagonista desse enredo o que, no caso, não era nada bom.
Ninguém deveria desejar que a própria vida seja literariamente interessante, vai por mim - o que a gente quer, o que eu quero, pelo menos, é paz de espírito, contas pagas, uma rotina mínima e tempo de sobra para fazer, pensar e consumir arte complicada. Mas divago, especialmente porque a minha primeira resposta à dor é sempre o humor fora de hora, e é claro que eu, sentindo que o texto está começando a ficar demasiadamente pessoal, apelo logo para a rota de fuga mais fácil. Portanto deixem-me tentar de novo, por favor:
“parece que é você que está assombrando todos esses mortos”.
Ela tem razão, e é por isso que esta newsletter existe (e também porque estou atualmente sem verba para fazer terapia). Tenho atravessado uma série de lutos, e me recusado a vivê-los. E porque fiz do luto um tabu, acabei me fechando em mim mesma, e parei de falar e escrever sobre coisas importantes, possivelmente por medo do que poderia infiltrar-se no meu discurso sem que eu percebesse ou, o que me parece ainda pior, percebendo, mas sem estar pronta para enfrentar as consequências.
Foi assim que vim parar em um limbo em que os mortos são constantemente assombrados por mim. Eu não os deixo em paz e também não fico em paz, embora tente me convencer de que estou bem, ou tão bem quanto alguém pode estar após os últimos Grandes Eventos Históricos. Conto nos dedos as tragédias mais recentes, porque sequer preciso voltar tanto no tempo, na foto antes do apocalipse: a colega de Ensino Médio que faleceu recentemente, vítima de um câncer agressivo. Dois dos meus gatos morreram, em um intervalo de três meses. A pandemia e suas perdas humanas, materiais e psicológicas.
E, somado a isso, uma efeméride especialmente dolorosa: um ano dos deslizamentos em Petrópolis, que praticamente destruíram grandes parte do bairro em que nasci e arredores. Meus vizinhos, parentes, amigos de infância que perderam suas casas ou suas vidas, ou a vida de seus familiares e amigos. As notícias subsequentes do êxodo dos sobreviventes: a família de fulano se mudou para o interior, a do cicrano foi para a baixada. E há ainda o problema que persiste até hoje de quem não tem para onde ir, e tampouco há formas de ficar.
A pandemia, um apocalipse mundial. Os deslizamentos em Petrópolis, um apocalipse local. A morte da minha colega, um apocalipse familiar. A foto do meu avô descendo a ladeira com uma sacola de pão nas mãos: o apocalipse do meu passado, que já não existe mais. Apocalipse é, no grego clássico, um termo que significa “revelação” ou “descoberta”. Para a escatologia cristã é o momento em que a verdade final do mundo é finalmente revelada. O que é de fato revelado, ao fim e ao cabo, é que o mundo, ou os mundos, as várias ideias sobre aquilo a que chamamos mundo, começam e chegam ao fim com mais ou menos drama e encenação bíblica, cavaleiros do apocalipse e parafernalha simbólica.
Estou escrevendo este texto há mais de um mês. Neste tempo mudei de ideia um sem número de vezes, descartei rascunhos, fiquei doente sempre que fazia progressos, encontrei formas criativas de procrastinar a escrita. Sou especialmente boa em evitar escrever, muito melhor do que sou em de fato escrever, posso fazer isso por longos períodos de tempo. Achei inclusive que, com algum esforço, podia evitar fazê-lo pelo resto da vida. Mas o peso se tornou demasiado: a tensão me fez vagar como um espectro pelo apartamento, piorou a minha insônia e a minha desatenção ao mundo exterior. Não escrever começou a dar mais trabalho do que escrever, a ironia não me escapa.
O meu medo não é desaparecer, não é por isso que estou aqui, mas justamente o oposto; porque, apesar dos meus esforços, não desapareci, permaneço, ainda que nos interstícios daquilo que um dia eu fui. Cada frase me ainda custa a sair, e sou atormentada o tempo todo por perguntas irrespondíveis: por que eu deveria expor a minha vulnerabilidade assim? Aliás, que direito eu tenho de estar vulnerável se, afinal de contas, estou viva, minha mãe está viva e minha casa ainda está de pé? Da última vez que estive em Petrópolis, folheando álbuns antigos, fiquei chocada ao constatar que, em uma das minhas fotos da minha festinha de oito anos havia quatro crianças sorridentes. Eu sou a única que ainda vive.
Passei tempo demais pensando que me recusar a escrever era evitar o lugar solitário da testemunha, aquela que fica para trás para contar a história, mas, na verdade, qual é a alternativa quando se quer continuar vivendo e não é possível abrir mão da linguagem? O antropólogo francês (apesar do sobrenome) David Le Breton fala sobre o “branco” em seu livro Desaparecer de si: uma tentação contemporânea, esse profundo esgotamento, a vontade de despojar-se de camadas de identidade, demitir a própria personalidade, ocupar um não lugar, abraçar a deserção como possibilidade, largar tudo e ir vender a sua arte na praia - ok, essa última parte talvez tenha sido um abrasileiramento meu. Mas, bem, são soluções temporárias. Qualquer tentativa de desnarrativizar a vida não vai fazer com que a solidão doa menos - falo aqui por experiência própria.
Tendo me decidido, surgiram dois problemas principais, com os quais tento lidar com graus variados de sucesso: como me permitir sentir a minha dor individual diante de tantas dores e catástrofes coletivas, e como deixar de ser eu mesma um fantasma, assombrando meus mortos em silêncio, imobilizada na minha capacidade de lidar com a dor. Sobre isso, penso na Szymborska, que tem um poema que começa assim:
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Porque o problema é justamente o fato do mundo (um mundo) poder muito bem acabar e você ter que continuar a partir daí. Não parece antinatural? O marco zero após o fim do mundo. O que acontece depois. Fazer a faxina, enterrar os mortos, reconstruir os prédios. E, agora, o que me parece especialmente difícil no meu caso, das ruínas do mundo antigo, construir uma nova narrativa para este novo mundo que não conheço.
Ao meu lado só tenho palavras. E mesmo após tantas - o Substack já me informou que ultrapassei há muito o tamanho máximo da newsletter, e corro o risco de que o texto apareça truncado nas caixas de e-mail e quase ninguém consiga lê-lo - ainda assim me revoltam como São. Só. Palavras. E, no entanto, são elas as únicas capazes de me retirar do limbo em que me enfiei, e me conduzirem de volta ao mundo dos vivos.
Para mim que desde cedo, desenvolvi uma relação próxima e amorosa com livros, e dediquei a maior parte de vida a estudar e trabalhar com linguagem, não sei se é estranho ou esperado que também sempre tenha me sentido atraída pelo aposto, para aquilo que há além do limite das palavras. Fascinam-me os pactos de silêncio, a recusa do pensamento ou da enunciação, o silêncio do claustro, os mantras, os eremitérios físicos e mentais. Assim como a volta (não raro dolorosa) ao reino da linguagem: como falar é uma tarefa monumentalmente difícil, assim como entender o outro ou se fazer compreensível. Ao mesmo tempo, como não conseguimos jamais entender a nós mesmos se não for através de alguém. Por isso me veio à cabeça este último filme.
Drive my Car é um filme japonês de 2021, dirigido por Ryusuke Hamaguchi (atualmente no catálogo do Mubi), baseado no livro de contos Homens sem Mulheres de Haruki Murakami - a maior parte da trama é retirada do conto homônimo que abre a coletânea, mas elementos de outras pelo menos duas narrativas, “Scherazade” e “Kino”, estão presentes no filme. Após uma chuva de premiações em diversos festivais, incluindo melhor roteiro em Cannes, Drive my Car ainda recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2022.
A história segue um diretor de teatro, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), ator e diretor de teatro que, dois anos após a morte traumática da esposa - um preâmbulo de 40 minutos no início do filme, antes que os créditos iniciais apareçam - é convidado para uma residência artística pelo festival de teatro de Hiroshima, para dirigir Tio Vânia, de Anton Tchékhov. Pelas normas do festival, um motorista deve ser contratado para dirigir seu carro durante sua estadia na cidade. A jovem escolhida, Misaki (Toko Miura), tem seus próprios fantasmas com os quais lidar, e esse encontro transformará a ambos.
É um filme que explora dentre outras coisas, o potencial e os limites da linguagem. Kafuku parece ser especialista em montar peças multilingues, com elencos etnicamente variados e legendas para a compreensão do público, produzindo um efeito visível em cena de que cada pessoa é seu próprio mundo e está falando em uma língua que o outro jamais pode alcançar na totalidade. O artifício artístico é especialmente em uma montagem de Tio Vânia, uma peça que busca explorar o mistério da interioridade e dos desejos individuais de seus personagens - e que serve de espelhamento para a trama de Drive my Car.
É também o encontro de apocalipses, numa cidade que tem um dos apocalipses mais famosos do século XX em seu passado recente, ainda que não haja qualquer rastro dele em cena. O mundo acabou, mas continua. Ainda naquele mesmo poema da Szymborska:
(…) Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.
Dentro de um carro, percorrendo as ruas de uma Hiroshima que poderia ser qualquer grande cidade industrial, escutando as falas de Tio Vânia declamadas em uma fita cassete por uma mulher morta, temos o diretor e o seu luto e a motorista e sua culpa. E vice-versa, como podemos notar, à medida que a relação de ambos avança. E é a partir dessas duas tristezas imensas, dessas duas solidões avassaladoras que se encontraram, que temos a cena da conversa na floresta, o ponto emocional mais alto do filme. Sem trilha sonora - um silêncio absoluto, tão branco quanto a neve que envolve os personagens.
A esta altura todos os segredos são revelados: a esposa de Kafuku era infiel, e um dos atores do elenco - justamente o escolhido para interpretar o Vânia, como uma espécie de punição - havia sido o último amante dela. Ele os flagrou sem querer mas fingiu não ter visto nada. A esposa provavelmente percebeu, uma vez que ele não conseguiu esconder seu incômodo, e pediu para conversarem quando ele chegasse em casa. Incapaz de confrontá-la, ele ficou na rua até tarde e quando enfim chegou em casa era tarde demais: ela havia sofrido um AVC. Misato, que a princípio contou ter perdido a mãe em um deslizamento de terra que destruiu a casa em que ambas viviam, acaba confidenciando a Kafuko que sofreu diversos maus tratos enquanto crescia e apesar de ter conseguido escapar do deslizamento, sabia que a mãe ainda estava soterrada, e não pediu ajuda.
“Os que vivem continuam pensando sobre os mortos” diz Kafuku, enquanto abraça Misato. “De um jeito ou de outro isso vai ser sempre assim. Eu e você precisamos continuar vivendo. Nós precisamos continuar vivendo.” E ambos começam a voltar a viver quando decidem conversar um com o outro, elaborar o luto, estender a linguagem - essa cacofonia de sons e erros e intenções convolutas e incompletas, mas que é A MELHOR COISA QUE TEMOS - ao outro como ponte.
Para deixar de assombrar os mortos, percebi que preciso parar de falar com eles sobre o mundo pós-apocalíptico. Preciso falar aos vivos, porque é para eles que contamos histórias. É claro, podemos contar histórias também para os não nascidos, mas talvez esse desejo faça parte de um traço otimista que eu não simplesmente possuo. O que eu posso querer dizer aqui das ruínas deste meu mundo que estou reconstruindo para mundos que sequer chegarei a conhecer?
Mas tampouco quero contar as histórias dos meus mortos aos vivos, embora ache que eles, particularmente, não se importem. A vantagem de estar morto é que nada mais é urgente ou importante. Mas eu sim me importo, e me sinto inadequada como narradora, e egoísta em meus motivos. Porque não estou fazendo isso por eles, mas por mim. Sou eu que estou me agarrando às palavras, na esperança de que, a partir delas, eu possa conjurar um mundo novo que eu possa habitar. É por isso que voltei a escrever.
Sincronicidades
(fora do texto, dentro do tema)
Iluminuras - Compilei uma lista de filmes no Letterboxd que, citados ou não no corpo do texto, conversam com ele, e ampliam a minha paisagem mental, ou são melhores em expressar tudo aquilo que eu tentei, mas não consegui escrever.
Três livros sobre o espaço instersticial entre a vida e a morte
“Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. México, 1955 (José Olympio ed., tradução de Eric Nepomuceno) - Um rapaz chega a um pequeno vilarejo mexicano em busca do pai desconhecido, o Pedro Páramo do título, poderoso latifundiário da região. No entanto, ele logo descobre que o pai está morto há muitos anos, e o povoado está abandonado, sendo habitado por fantasmas que contam suas histórias e constróem uma narrativa fragmentada a várias vozes. Para quem ainda não conhece essa belezinha, recomendo tremendamente: é uma novela que influenciou fortemente os escritores do boom latino-americano e sobre o qual Gabriel Garcia Márquez dizia que sem Pedro Páramo, não haveria Cem Anos de Solidão.
“Lincoln no Limbo”, de George Saunders. EUA, 2017 (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster) - Vencedor do Man Booker Prize, o romance parte de um acontecimento real - a morte do filho do presidente americano Abraham Lincoln (Willie, de apenas 11 anos) - em meio à Guerra Civil Americana para compor um impressionante caleidoscópio de vozes, histórias, documentos e testemunhas tanto de processos históricos quanto da devastação operada pelo luto. No cemitério em que Willie foi enterrado diversas almas estão presas no limbo, e elas falam, falam sem parar. Entre figuras históricas e fictícias, papéis falsos e verdadeiros, o romance é vertiginoso, difícil de acompanhar, intenso e uma das experiências estéticas mais interessantes que eu li nos últimos anos.
“Limbo”, de John Templanza Better. Colômbia, 2019 (Peabiru, tradução de René Duarte) - Esqueça Macondo, ó leitor que adentra Crisântemo. Em um povoado colombiano que parece ter saído das páginas de um gótico americano, duas gêmeas albinas descendentes de uma santa polonesa mantém uma casa na qual recebem crianças mortas antes que pudessem ter sido batizadas, e realizam um ritual para salvar suas almas do inferno. Porém tudo muda quando uma criança viva e intersexual é deixada à porta delas. Li recentemente, falei mais um pouco sobre este livro no Instagram.
A Belief in Ghosts: Poetry and the Shared Imagination - Um ensaio da poeta norte-americana Dorothea Lasky.
Assincronicidades
(fora do tema, dentro da minha cabeça)
Dissecando o potencial, limites - e os muitos riscos - dos usos prejudiciais das novas tecnologias - Ted Chiang, o meu escritor favorito de Ficção Científica - e, certamente, um dos meus escritores vivos favoritos em qualquer gênero - publicou na New Yorker recentemente dois ensaios interessantíssimos sobre Inteligência Artificial e outras tecnologias gerativas. “Chatgpt is a blurry jpeg of the web” e “Will IA become the New McKinsey?”
A invenção da culinária italiana no século XX - Há pouco mais de um mês correu no Twitter um artigo sobre Alberto Grandi, professor da Universidade de Parma, na Itália, que, em 2018, lançou um livro chamado “Denominazione di origine inventata”, sobre como boa parte das tradições italianas, são, na verdade, bem mais recente do que imaginamos. A maioria nasce do pós Segunda Guerra, e possuem grande influência de cozinha de imigrantes ítalo-americanos, por exemplo. O livro foi um sucesso (e um ultraje à honra das nonnas, evidentemente), e tornou-se um podcast, abreviado como D.O.I., e disponível para audição em diversas plataformas (em italiano). Eu acabei a primeira temporada e é mesmo muito interessante.
Janelle, please come to Brazil - Estou completamente obcecada com o clipe dançado de Float, da Janelle Monáe. Dos bailarinos às movimentações de câmera, o vídeo é simplesmente hipnótico. Porém, não consigo deixar de pensar no quão perfeita seria uma versão brasileira com a galera das batalhas de passinho. Imaginem só.
“Who would I be without you/without them?” - Estou ouvindo compulsivamente “The Record”, do trio Boygenius, lançado no fim de março. O encontro entre as jovens cantoras e compositoras Phoebe Bridgers, Julien Baker e Lucy Dacus é um bálsamo de parceria colaborativa emocional, intelectua, artística e amorosa entre mulheres. Gostei muito da resenha da Pitchfork a respeito do álbum.
“Ninguém precisa ser fiel aos erros do passado” - Ainda estou sob o efeito de um livrinho muito curto e contundente, pois consiste na transcrição de uma fala pública. “Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas”, de Paul Preciado. Escrevi um pouco sobre ele no Instagram.
A Marginália é uma newsletter artesanal, escrita majoritariamente à mão, com intromissões ocasionais de algumas patas. Obrigada pela leitura.
No livro Distância de resgate, a Samanta Schweblin se questiona: existe algum apocalipse que não seja pessoal? Eu, particularmente, acho que não. Todos são pessoais. Tenho uma grande afinidade com os temas que você traz aqui, morro de medo da morte, e carrego meus mortos desde muito cedo. Obrigada por escrever, estou pensando várias coisas agora.
gostei demais dessa edição que explodiu o limite de caracteres <3