#03 - Eram as orcas camaradas?
A internet as elegeu como um símbolo da luta de classe interespécies. Mas o backlash contra os memes engraçadinhos é um fenômeno ainda mais inusitado do que orcas afundando barcos de luxo.
Pós-escrito: a esta altura já virou piada, mas vá lá: excedi mais uma vez o limite máximo de caracteres do Substack, então é possível que este texto chegue em alguns e-mails de forma truncada. Caso isso aconteça com você, é só clicar em “open in browser” ali no canto superior direito, para visualizar a newsletter na versão web.
I - Orcas vs. Barcos1
O assunto virou notícia em maio desse ano: orcas estão deliberadamente atacando e, em alguns casos, afundando veleiros na região do Estreito de Gibraltar - a faixa de água de 58 quilômetros que liga o mar Mediterrâneo ao Oceano Atlântico, situado entre o sul da Espanha e o norte do Marrocos. No entanto, o comportamento começou a ser observado em 2020, quando surgiram os primeiros relatos de encontros hostis entre orcas e embarcações, nas quais muitas vezes foi necessário a intervenção da guarda costeira para resgatar tripulantes à deriva.
O modus operandi dos ataques - que rendeu todo tipo de piadinha nas três línguas que chequei sobre orcanização - consiste nas orcas golpeando o leme do barco até quebrá-lo, enquanto a orca mais velha golpeia o casco, chegando por vezes à rompê-lo. Os ataques podem durar de vinte minutos a uma hora e meia e, às vezes, os animais perdem o interesse e vão embora sem causarem grandes danos, mas às vezes não. Uma vez afundado um barco, no entanto, o grupo perde completamente o interesse por ele. Os náufragos não precisam se preocupar em virar comida das tais “baleias assassinas”: orcas na natureza são predadores muito exigentes com suas presas, e não têm histórico de agressão contra seres humanos...
…ATÉ AGORA. [TAM TAM TAM]
* É o que eu escreveria se fosse uma colunista apocalíptica de um veículo reacionário, provavelmente. Mais sobre isso na parte IV. Por enquanto, vamos voltar aos fatos.*
E os fatos dizem que não há motivo para estardalhaço. Citando David Neiwert, um jornalista que escreveu um livro muito simpático sobre orcas chamado Of Orcas and Men - what killer whales can teach us2 em um episódio em que ele, a esposa e a filha pequena estão andando de caiaque e são surpreendidos por um pod de orcas:
(…) os dias em que Fiona, sua mãe e eu passamos na companhia ocasional de baleias assassinas estávamos à mercê delas. De fato, em seus encontros, "misericórdia” é a palavra que mais apropriadamente descreve a resposta comum das orcas aos humanos. Ao contrário de suas contrapartes entre os superpredadores - digamos, ursos pardos ou grandes tubarões brancos - os encontros são inevitavelmente benignos e inofensivos. Elas escolhem um caminho inteligente: estão, na melhor das hipóteses, ligeiramente curiosas e, mais frequentemente, são extremamente destemidas e prestam pouca atenção em você.3
A população de orcas ibéricas é pequena, com menos de cinquenta indivíduos. Isso quer dizer, principalmente, duas coisas: que são uma subpopulação em perigo crítico de extinção - e não, populações de orcas não são intercambiáveis, como veremos adiante - e, ainda, que são animais com nomes e números, facilmente rastreáveis. Especula-se que o comportamento começou com uma orca adulta, a matriarca de uma família de 15, nomeada como Gladis branca, que poderia ou não estar grávida à época do primeiro ataque e foi depois se espalhando, por imitação. Outras orcas do mesmo grupo (ou pod, em inglês) foram nomeadas como Gladis cinza, Gladis pequena, Gladis negra… em homenagem à designação cunhada em 1789 para as orcas pelo naturalista francês Pierre Joseph Bonnaterre: Orca gladiator.
De 2020 para cá, mais de 500 interações entre orcas e barcos foram reportadas às autoridades, há inclusive um paper publicado em 2021 sobre o assunto, por cientistas da região. É algo que simplesmente não acontecia, para qual não há literatura a respeito porque não há registros anteriores. Mesmo nas piores épocas de caça às orcas, antes que diversas legislações sobre a conservação da espécie fossem sequer imaginadas, os animais jamais demonstraram comportamento agressivo diante de seus captores.
Os cientistas trabalham com algumas hipóteses que poderiam explicar o comportamento anômalo das orcas: a primeira entende os ataques como uma reação ao ambiente estressante em que vivem atualmente, levando em conta variantes como aquecimento dos oceanos, poluição da água e sonora e tráfego marítimo intenso na região. A segunda hipótese lida com a possibilidade de “vingança” - um comportamento hostil diante de barcos, aprendido diante de um trauma vivido por uma baleia específica, e ensinado a outras. No entanto, embora seja uma hipótese popular para a mídia, ela não parece ser bem recebida entre grande parte dos cientistas entrevistados para os mesmos veículos. A última hipótese é a de que é apenas um comportamento de jogo. Desenvolveram esse hábito de acossar, segundo as estimativas, um a cada cem barcos que passam e tratam isso como um grande momento de diversão em família, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.
II - O que é uma orca?4
A orca (Orcinus orca) é o maior dos trinta e cinco membros da família dos golfinhos - odontocetos, mamíferos marinhos que possuem dentes.5 Única do gênero Orcinus (relativa ao “reino da morte”, o espaço de Orco, para os antigos romanos), foi descrita por Lineu em 1758 em seu Systema Naturae. É um superpredador versátil, com dietas diferenciadas a depender do ecossistema em que se encontra: come de peixes e moluscos a focas, tubarões, leões marinhos e até baleias quando caçam em grupos. É o único cetáceo a caçar outros cetáceos, e não possui predadores naturais.
Orcas têm cérebros imensos proporcionalmente ao seu tamanho, o que as permitiu desenvolver, entre outras coisas, comunicação refinada, ecolocalização e vida social complexa, baseada na formação e manutenção de grupos familiares extensos, de linhagem matrilinear. É o segundo mamífero com maior distribuição ao redor do globo, logo após o ser humano. E, por todo o mundo, as orcas se dividem em ecótipos, que não são espécies separadas, mas grupos de animais com características físicas, culturais e comportamentais diferentes.
Testes de DNA entre linhagens de orcas transientes e residentes (dois ecótipos do Pacífico Norte) apontam que, apesar de frequentarem as mesmas águas (olha o cacoete: eu ia escrever território!), não há cruzamento genéticos entre os ecótipos há mais de 700.000 anos - o que é muito mais tempo, do que, por exemplo, a existência da nossa própria espécie.6 Há pelo menos dez ecótipos conhecidos atualmente, cinco em cada hemifério. Eles possuem dietas, dialetos, brincadeiras e estratégias de caças únicas, conhecimentos que são passados entre gerações e não são compartilhados com outros ecótipos.
Citando mais uma vez David Neiwert:
O aspecto mais impressionante da cultura das orcas, para mim, é a absoluta ausência de conflitos internos e a predominância da cooperação, diz Howard Garrett [co-fundador da ONG Orca Network]. Elas possuem hierarquias de dominância, a começar pelas matriarcas, mas não há sinal de disciplina, não há disputas por posição. Você só vê marcas de luta ocasionais, principalmente nos animais mais jovens. Mas elas não batem cabeça, não lutam entre si. Para além disso, um dos poucos comportamentos universais que elas têm é que o de não machucar os humanos.
A história é muito diferente no que diz respeito às orcas mantidas em cativeiro. O documentário Blackfish, dirigido por Gabriela Cowperthwaite, fez um relativo sucesso (dentro do escopo ‘documentário’, evidentemente) em 2013, ao investigar a história da morte da treinadora Dawn Branchaeu, atacada pela orca Tilikum, em 2010, no meio de uma apresentação pública no SeaWorld de Orlando, na Flórida. Sucede que Tilikum já havia sido responsável por outras duas mortes anteriormente; a primeira em um parque aquático no Canadá em 1991, uma outra treinadora, que foi puxada para a água por Tilikum com o aúxilio de outras duas orcas no tanque. A segunda já no próprio SeaWorld, no fim da década de 90, quando um homem se escondeu no parque para nadar com as orcas após o fechamento. Embora o caso tenha sido encerrado com a causa da morte oficial de hipotermia, o corpo da vítima foi encontrado na costas de Tilikum, e supõe-se que a orca o tenha atacado.
O documentário reuniu especialistas, ex-treinadores, cientistas, conservacionistas e militantes para chegarem a uma conclusão óbvia, mas importante: manter superpredadores superinteligentes que pesam toneladas em microtanques e fazê-los performar dia após dia truques de circo para o entretenimento de um bando de primatas não apenas não é apenas a nossa própria fossa abissal do campo da ética: é uma ideia bastante idiota.
John Hargrove, um dos ex-treinadores que é entrevistado em Blackfish lançou, em 2016, seu próprio livro, dando uma perspectiva de dentro de quem passou anos trabalhando para a empresa SeaWorld. O livro se chama Beneath the Surface: killer whales, SeaWorld and the truth behind Blackfish. Nele Hargrove constrói uma boa analogia para explicar a situação das orcas: o temor humano de uma abdução alienígena.
Imagine só: manter memórias de um mundo posterior, ao qual você pertencia e vivia em liberdade, com a sua família, a sua cultura, a sua rotina, as suas escolhas. E então, em um dia como outro qualquer, você é capturado por seres estranhos, e é jogado em um cárcere articifial, que tenta reproduzir seu ecossistema, mas em dimensões diminutas e claramente artificiais.
Você está à mercê de seus captores para tudo: da comida que você come às condições mínimas para a sua própria existência naquele planeta alienígena, uma vez que o ecossistema deles é tão diferente do seu. Como você é altamente inteligente, logo entende o que os seus captores desejam: eles querem treiná-lo para que você se se apresente diante de plateias gigantescas e barulhentas, executando a mesma rotina de novo e de novo e de novo. Nada do que você faz em sua nova vida tem minimamente a ver com o que fazia em sua vida anterior, com a sua espécie ou mesmo com o seu desejo de estar ou não ali, mas não há forma de voltar para casa. Você não pode simplesmente pular do tanque porque fora do tanque não há suporte possível para a sua vida.
Então você se comporta e se submete. E sobrevive. E aguenta o stress. E atura os treinadores, os tanques pequenos, as plateias barulhentas, a água imunda, os outros seres que estão presos com você, a privação de fome, as doenças, a cópula e a gravidez forçada, a separação dos filhotes, todo tipo de indignidade. Até que um dia você não atura mais, e um “acidente” acontece.
Nas palavras de Hargrove:
Na natureza, cada orca conhece seu lugar em sua família e em seu grupo - e quem tem precedência sobre o outro. Mas em um parque marinho, essa estrutura hierárquica é reprimida e superdimensionada. Pela minha experiência, a orca em cativeiro é uma coleção enorme de inteligência e emoção - bem como sensibilidade e suspeitas. Elas podem ser divas, carentes de atenção e ter ciúmes do que você faz com outras orcas. Embora os leões-marinhos possam ser temperamentais, eles não são os superpredadores do mar. Nada no mundo caça baleias assassinas como presa. Elas sabem que estão no topo da pirâmide.
III - O que é uma pessoa?7
Um boi vê os homens
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos — e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.[Carlos Drummond de Andrade - em Claro enigma]
A bióloga marinha Alexandra Norton, que tem o curioso apelido de “ Jane Goodall do Canadá”, escreveu um livro de memórias que se entrelaça com a sua experiência profissional: Listening to the whales: what the orcas have taught us. Nele, ela conta sobre como nasceu em uma família artística, mas o encontro com a obra da primatologista Jane Goodall a fez perceber que queria trabalhar com animais selvagens, aos 12 anos. Pouco depois, ao ouvir as orcas se comunicando, descobriu exatamente o que queria fazer da vida.
No fim da década de 70, enquanto trabalhava em um parque aquático na Califórnia, Alexandra foi pioneira na gravação de sons de orcas, instalando um hidrofone no tanque em que elas ficavam. Assim pôde registrar linguagens de interação, acasalamento e até o luto de uma mãe por um filhote natimorto.
Na década de 80 a autora e o marido, um fotágrafo de vida natural, mudaram-se para uma baía remota na Columbia Britânica. O livro retrata os anos idílicos que compartilhou com o marido, a tragédia que resultou na morte dele por asfixia durante um mergulho, a decisão de continuar morando numa comunidade isolada e continuar suas pesquisas, a criação de um filho sozinha, o novo parceiro, o novo bebê, as suas descobertas que ajudaram na compreensão de como se dá o fenômeno de ecolocalização das orcas. Diz Alexandra, ao início do livro, relatando uma manhã normal em sua vida:
Para estudar um animal selvagem, é preciso adaptar a vida ao seu ritmo. É a única maneira de aumentar as suas chances de encontrar o seu objeto de estudo e, talvez o mais importante, a única maneira de começar a entender como o seu objeto de estudo encontra o mundo.
Norton descreve os momentos em que teve a sorte de estar em proximidade com as orcas em seu habitat natural. Ela relata a emoção de testemunhar a comunicação complexa entre os membros de uma mesma família de orcas, como elas se coordenam para caçar e como expressam afeto uns pelos outros. Suas histórias capturam a essência das orcas como seres inteligentes e sociais, que possuem uma riqueza de comportamentos e vocalizações que refletem uma cultura própria.
A autora também compartilha suas experiências ao lado de outros pesquisadores e cientistas que dedicam suas vidas ao estudo desses animais. Ela ilustra como essas colaborações enriquecem nosso entendimento sobre as orcas e como as informações compartilhadas entre especialistas podem levar a descobertas inovadoras.
Além das experiências diretas, Norton explora questões mais amplas que afetam as orcas e seus habitats. Ela levanta preocupações sobre o impacto do ser humano nos oceanos, como a poluição por plástico, o aumento da temperatura da água devido às mudanças climáticas e os efeitos perturbadores do tráfego de embarcações. A autora ressalta a importância de proteger os ecossistemas para garantir a sobrevivência das orcas e de muitas outras espécies marinhas.
Ao longo do livro, ela também examina as controvérsias em torno da manutenção de orcas em cativeiro para fins de entretenimento. Ela compartilha perspectivas informadas - afinal, começou sua vida pesquisando sobre orcas em parques marinhos - sobre como esses ambientes artificiais afetam o bem-estar emocional e físico da espécie. E um ponto focal do livro é a defesa de que seres altamente inteligentes como orcas precisam ter direitos diferenciados, semelhantes aos que (ao menos, em teoria) compartilhamos entre a nossa espécie. Nas palavras da autora:
Amadurecemos a capacidade de reconhecer a consciência em alguém que não se parece ou age como nós? Somos humanos o suficiente para estender os direitos da humanidade a outra espécie senciente?
Um animal pode ganhar o status de pessoa? Se sim, que tipo de animal? E a partir de quais critérios se decide isso? É aí que começa a treta. Acho que ninguém precisa ser exatamente um especialista em biologia ou em ética animal para perceber que a nossa ideia clássica de inteligência é bastante antropocêntrica. Os critérios que usamos para definir e medir aquilo a que chamamos inteligência são critérios nos quais nós somos realmente muito bons. O que quer dizer, é claro, que uma ideia menos antropocêntrica de inteligência requeriria uma ideia de inteligência, na verdade, mais que isso, uma ideia de PESSOA menos antropocêntrica. Eu gosto muito do que o Peter Godfrey-Smith diz em Metazoa:
É preciso um esforço contínuo para não ceder ao hábito de pensar que todas as formas de experiência devem ter algo humano em diversos aspectos.
Maria Esther Maciel, escritora e pesquisadora brasileira sobre literatura e outras subjetividades - começa seu novo livro Animalidades - zooliteratura e os limites do humano fazendo um longo inventário sobre a palavra “animal” - desde a Antiguidade, quando designava todos os seres viventes à Idade Moderna, quando passou a ser considerada o um antônimo para o conceito de humano. Ela recorre às metáforas e aos dicionários para demonstrar que a definição atual de animal
(…) tende a não incorporar o homem e, quando se relaciona ao universo humano, o faz com propósitos depreciativos. Nesse sentido, assume seu papel constitutivo de uma concepção negativa e antropocêntrica do mundo zoo. Trata-se, aí, de uma negatividade que se justifica não apenas pela marginalização dos seres não humanos na hierarquia dos viventes, como também pela demarcação dos chamados “próprios do homem”, ou seja, faculdades, habilidades e qualidades consideradas exclusivas da espécie humana e negadas aos demais seres vivos: pensamento, linguagem, sentimentos, habilidades cognitivas e artísticas, cultura, enfim, capacidade de ter saberes e um ponto de vista próprio sobre o mundo.
Discutir essa cisão entre o animal e o humano - e mais, discutir uma possível reconciliação entre os conceitos, quando pensamos que o conceito de pessoa pode se estender para além da ideia do ser humano é um assunto para lá de complexo e que poderia render um texto a parte, mas, para fins e efeitos deste texto (que já não é pequeno) basta-nos saber que, para a Ética, o conceito de pessoalidade refere-se ao valor intrínseco e à dignidade de cada ser humano como um indivíduo único e autônomo.
A pessoalidade na ética está intimamente ligada à noção de respeito pela autonomia e dignidade de cada indivíduo. Ela destaca que cada pessoa deve ser tratada como um fim em si mesma, em vez de ser usada como um meio para atingir algum objetivo. Esse conceito é fundamental em muitas teorias éticas, incluindo a ética deontológica de Immanuel Kant e a ética dos direitos humanos.
O reconhecimento da pessoalidade na ética também está relacionado à consideração moral e à empatia em relação aos outros. Significa que os indivíduos devem ser tratados com justiça, igualdade e compreensão, levando em conta suas necessidades e desejos individuais. Isso influencia a forma como abordamos questões como direitos humanos, diversidade, inclusão social e tratamento justo em todas as esferas da vida. Ou seja, a pessoalidade destaca a importância intrínseca e o valor único de cada pessoa, bem como a responsabilidade de respeitar, proteger e promover sua dignidade e autonomia. Se cindimos a ideia de que pessoa e humano são sinônimos, humano passa a ser somente um termo biológico, enquanto uma pessoa é um termo moral.
No fim de seu livro Literatura e Animalidade (a parte da pesquisa dela que antecede o Animalidades, publicado esse ano), Maria Esther Maciel inclui uma entrevista que ela fez com Dominique Lestel, um filósofo francês interessado, entre outras coisas, nas relações entre humanos, animais e máquinas, e no desenvolvimento daquilo que chama de “comunidades híbridas” - o que implica numa convivência entre diferentes espécies, baseada na troca de experiências, interesses e afetos. Cito aqui uma parte do que ele diz:
O mundo é habitado por sujeitos que têm múltiplos estatutos. Como se pode viver numa tal heterogeneidade ontológica? Privilegiando o existencial em vez do ontológico. A única resposta satisfatória nos quatro cantos do mundo foi construir comunidades híbridas, nos quais o homem pode viver com agentes heterodoxos - animais, vegetais, espíritos. Para mim, ser humano é viver uma comunidade híbrida. O Ocidente, que fez a escolha infeliz do ontológico em vez do existencial, encontra-se numa situação inédita. A desvalorização do mundo o conduz, antes de tudo, à sua destruição; quem se surpreenderá com isso? Mas o ocidental não escapa às comunidades híbridas; ele as recria com artefatos racionais, como tamagochis ou os AIbots ou os avatares digitais.
IV - Esopo estaria orgulhoso dos nossos memes de orcas8
O artigo que despertou a atenção do público a respeito da questão das orcas e dos barcos em maio saiu pelo site LiveScience. A partir dele, a ideia foi se espalhando e logo surgiu no Twitter anglófono a hashtag #orcauprising. Do inglês para o resto da Babel foi um pulo, e logo estávamos coletivamente reunidos no ritual de saudar - e memeficar, evidentemente - os novos heróis da luta de classes, que finalmente atingiu um status insterespécies.
A história tem um apelo irresistível, e chegou praticamente pronta na ponta dos nossos dedos. Do mais absoluto nada ficamos sabendo sobre esses predadores marinhos belíssimos e superinteligentes começam a afundar barcos na Europa. Mas não são barquinhos de pesca ou caiaques, são iates e veleiros luxuosos, símbolos de um estilo de vida opulento, da concentração de renda, do capitalismo em seu estágio máximo, do desperdício de recursos e da infâmia geral associada ao 1% mais rico da população. É claro que esse tipo de ocorrência contaminaria nossas imaginações em um segundo.
No entanto, o backlash não demorou a aparecer: surpreendendo um total de zero pessoas cronicamente online, não faltaram ~vozes discordantes~ que insistiram no fato de que não se pode antropomorfizar comportamentos animais. E foi assim que, de repente, os pobres primatas-Esopo, iludidos que estávamos pelos encanto das fabulações, acordamos do nosso transe e nos demos conta de que as orcas jamais estudaram teoria política.
Não, pera.
O que aconteceu, na verdade, para além de ninguém ligar para gente chata na internet, foi a publicação de um artigo “anti-orcas” tão absurdo, ridículo, equivocado e francamente hilário que ele mesmo virou meme e foi incorporado como parte da mitologia. Se você tiver paciência, pode lê-lo por completo aqui mas, em resumo, ele foi publicado no The Atlantic - site cujo dono é também proprietário de um iate de 120 milhões de dólares -, escrito por um sujeito chamado Jacob Stern e o título já é maravilhoso por si: "As baleias assassinas não são nossas amigas. Pare de torcer pelas orcas que atacam os barcos.”
É um daqueles textos em que a gente fica se perguntando: é burrice ou má-fé? (E qual alternativa é pior? Ou melhor?)
Em todo caso, negar a dimensão fabulesca desse episódio é negar a força que a fábula ainda tem para transmitir ensinamentos e valores de maneira acessível e abrangente. Ao usar orcas para representar aspectos da natureza humana, essa nova fábula coletiva das orcas justiceiras nos fornece uma perspectiva distanciada que facilita a reflexão sobre comportamentos, decisões e consequências que nós mesmos podemos tomar, ainda que em microescala, porque, convenhamos, se pudéssemos ir afundar os iates com as nossas próprias mãos sem consequências, já não estaríamos fazendo excursões de verão?
Fábulas são, afinal de contas, histórias atemporais atravessam culturas e gerações, transmitindo mensagens universais que instigam a ponderação ética e incentivam a autorreflexão, enquanto mantêm seu apelo ao entretenimento e aprendizado - e os memes! Com isso Esopo não contava. Os memes! O Antropoceno não passa bem, agosto já teve uns três verões aqui no hemisfério sul e, enquanto termino este texto, a temperatura despencou mais de 20 graus em dois dias - se a gente não puder rir um pouco e torcer pelas orcas, então o quê, me digam? Então o quê?
🧭 Sincronicidades
(fora do texto, dentro do tema)
Iluminuras: compilei uma lista de filmes no Letterboxd sobre subjetividades não-humanas.
O Hi-Phi Nation (podcast do Slate sobre filosofia em formato de narrativas) tem um episódio muito interessante falando sobre direitos dos animais ao longo da história - incluindo julgamentos medievais de cachorros e porcos - e a ideia de uma Zoópolis, uma sociedade futura imaginada por Sue Donaldson e Will Kymlicka em Zoopolis: A Political Theory of Animal Rights, onde os animais selvagens e domesticados teriam tantos direitos legais como os seres humanos.
O mistério do Outro: quatro livros que tentam imaginar a experiência de estar vivo para além da humanidade:
Memórias de um urso polar, de Yoko Tawada. Japão, 2019 (Todavia, trad. de Lucia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann). Três gerações de ursos polares acompanham as principais mudanças do século XX e XXI. Mistura de drama familiar com, bem, romance fantástico, Yoko Tawada imagina aí sua própria Zoópolis, com implicações interessantes. Imperdível. Escrevi brevemente sobre ele no Instagram.
Escute as Feras, de Nastassja Martin. França, 2021 (Editora 34, trad. de Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann) Hesitei se colocava esta entrada aqui mas, por fim, decidi que valia a pena, por ser uma narrativa de fronteira. Nastassja Martin é uma antropóloga que encontrou um urso e sobreviveu para contar a história. Mais ou menos. É complicado. O que há de mulher e o que há de urso depois de um encontro desses, meus amigos… enfim. É um livro absolutamente inquietante. Também escrevi sobre ele no outro site.
Que diriam os animais? (Ubu, 2021, trad. de Leticia Mei) e Autobiografia de um polvo e outras narrativas de emancipação (Bazar do Tempo, trad. de Milena P. Duchiade), de Vinciane Despret. Bélgica, 2021 e 2022, respectivamente. Vinciane Despret é uma pensadora interessada em filosofia da ciência, e suas narrativas não raro misturam o rigor científico às indagações filosóficas, à poesia e à ética. Ambos os livros são muito interessantes. O primeiro é uma coletânea de histórias, quase uma coletânea de fábulas de uma Esopo com uma lupa na mão e o método científico na cabeça. Já o segundo, mais literário, parte de um conceito criado pela Ursula Le Guin, a Therolinguística, para compor três ensaios que investigam a subjetividade de pessoas não humanas. É interessantíssimo, li recentemente, também escrevi sobre ele no Instagram.
🌐 Assincronicidades
(fora do tema, dentro da minha cabeça)
Moby Dick Big Read: esse é, de longe, um dos projetos mais legais que eu já vi na internet. Os 135 capítulos do romance de Melville lidos por 135 vozes, algumas bastante conhecidas. Você sempre sonhou com a Tilda Swinton sussurrando no seu ouvido: “Call me Ishmael?” Hoje é o seu dia de sorte, porque ela narra o primeiro capítulo. Mas há outros nomes como China Miéville, John Waters, Mary Oliver e Benedict Cumberbatch. Estou há anos para fazer a “novena Moby Dick” e ouvir um capítulo por dia durante 135 dias, com o original na mão. Quem sabe, com esse lembrete, dessa vez começo.
Bookshelfie: essa dica finíssima veio da minha amiga Juju Gomes. Eu adoro o processo e a curadoria do Women’s Prize, mas não fazia ideia que elas têm um podcast, que já está na quinta temporada. No podcast, escritoras (mas não só, há outros tipos de artistas) indicam 5 livros que foram essenciais para a formação e a imaginação delas. Eu comecei pelo episódio da Madeline Miller, e já ouvi vários, como o Ruth Ozeki, o da Isabel Allende, o da Gillian Anderson e o da Emeli Sandé, mas vou deixar como sugestão o meu favorito, pois uma das minhas heroínas pessoais, Bernardine Evaristo.
Eu adorei o primeiro episódio do podcast Livros no Centro, da Livraria Megafauna, com e sobre o Gustavo Scarpa, ex-meia do Palmeiras - e pra quem não sabe, um resenhista de livros maravilhoso.
Finda por ferir com a mão essa delicadeza/a coisa mais querida/a glória da vida: desde que saiu, não consigo parar de ouvir o disco do Xande de Pilares cantando Caetano. A dobradinha ficou perfeita, especialmente na versão de Qualquer Coisa, com a participação sublime de Hamilton de Holanda. Me recuso a economizar na adjetivação.
📜 Marginália da Marginália
(sugestões que recebi por e-mail, comentários do substack, redes sociais ou que me foram reveladas em sonhos)
Sobre a edição #01: Depois, antes, agora
A escritora Fabiane Guimarães citou, no comentário que ela fez ao meu texto, o primeiro romance - ou novela, pois são menos de 100 páginas para se ler numa única sentada - da argentina Samanta Schweblin, Distância de Resgate. Publicado em 2014 em espanhol, o texto ganhou até ganhou uma tradução para o português pela Record, mas que infelizmente está esgotada. O livrinho fez o maior sucesso no mundo anglófono, chegando a ser finalista do Booker Prize em 2017, e tendo vencido o Shirley Jackson em 2018. A autora estava há tempos na minha lista de latinoamericanas que escrevem ficção especulativa, e aproveitei a dica para “começar do começo”. Tive de caçar a edição em espanhol, mas, ainda assim, decidi deixar essa nota aqui porque: vale demais o esforço. Terminei o relato assombrada. “A veces no hay tiempo para confirmar el desastre.” Cito a Fabi aqui: “ No livro Distância de Resgate, a Samanta Schweblin se questiona: existe algum apocalipse que não seja pessoal?” Distância de Resgate é um livro em formato de diálogo entre uma mulher que pode ou não estar morrendo e uma criança que pode ou não estar morta, e pode ou não ser um monstro. A linguagem opera a partir de duplos, de enganos, de elipses, de estranhamentos e de violências, e o texto pode ou não ter conotações sobrenaturais, assim como pode ou não ser um comentário sobre o capitalismo tardio e os danos causados por humanos ao planeta. É atordoante. E há um filme - que, vá lá, perde muito da sua força no audiovisual, mas é uma experiência ainda assim interessante, dirigido pela peruana Claudia Llosa, disponível na Netflix.
Sobre esta edição:
O Marco Rigobelli compartilhou comigo nas chat do Substack - para quem tem o aplicativo do Substack instalado, eu estou usando o chat para compartilhar bibliografia e curiosidades do processo de escrita de quando em quando - uma matéria da Scientific American especulando sobre a inteligência dos dinossauros.
A Marginália é uma newsletter artesanal, gratuita, de periodicidade incerta (por exemplo, talvez eu tenha passado 2 meses da minha vida pesquisando orcas compulsivamente!?), escrita majoritariamente à mão. Para apoiar o meu trabalho você pode contratar os meus serviços ou jogar dinheiro na tela - sério, eu literalmente não faço ideia de como e se vou passar o chapéu por aqui.
So long, and thanks for all the fish.
É um fato importante, e conhecido por todos, que as coisas nem sempre são o que parecem ser. Por exemplo, no planeta Terra os homens sempre se consideraram mais inteligentes que os golfinhos, porque haviam criado tanta coisa — a roda, Nova York, as guerras, etc. — , enquanto os golfinhos só sabiam nadar e se divertir. Porém, os golfinhos, por sua vez, sempre se acharam muito mais inteligentes que os homens — exatamente pelos mesmos motivos. Curiosamente, há muito que os golfinhos sabiam da iminente destruição do planeta, e faziam tudo para alertar a humanidade; porém suas tentativas de comunicação eram geralmente interpretadas como gestos lúdicos com o objetivo de rebater bolas ou pedir comida, e por isso eles acabaram desistindo e abandonaram a Terra por seus próprios meios antes que os vogons chegassem. A derradeira mensagem dos golfinhos foi entendida como uma tentativa extraordinariamente sofisticada de dar uma cambalhota dupla para trás assobiando o hino nacional dos Estados Unidos, mas na verdade o significado da mensagem era: Adeus, e obrigado por todos os peixes.
Douglas Adams - O Guia do Mochileiro das Galáxias (trad. de Paulo Henriques Britto e Carlos Irineu da Costa. Sextante, 2004)
Minhas principais fontes de informação sobre o caso das orcas:
Why killer whales won’t stop ramming boats in Spain (CNN)
Why are orcas suddenly ramming boats? (BBC)
Why are orcas attacking boats and is the behaviour spreading? (The Guardian - podcast)
Eu ia comentar que o trocadilho com Of Mice and Man é meio infame, mas que moral eu tenho depois do título que eu mesma escolhi para essa newsletter, que não denota apenas 1) a minha idade mas 2) a minha predileção pela leitura da Revista Planeta durante a infância.
As traduções, quando não indicadas, são todas minhas.
A lista completa de livros que usei para construir esse texto:
Of Orcas and Men - what killer whales can teach us - David Newert - Overlook Press, 2015
Beneath the surface: killer whales, Seawold and the truth behind Blackfish - John Hargrove, with Howard Chua-Eowan Palgrave Macmillan, 2016
Listening to the whales: what the orcas have thaught us - Alexandra Norton Ballantine Books, 2002
Literatura e Animalidade - Maria Esther Maciel Civilização Brasileira, 2016
Animalidades: zooliteratura e os limites do humano - Maria Esther Maciel Instante, 2023
Outras Mentes: o polvo e a origem da consciência - Peter Godfrey Smith Todavia, 2019. trad. de Paulo Geiger
Metazoa: a vida animal e o despertar da mente - Peter Godfrey Smith Todavia, 2021 trad. de Daniel Galera
Quer dizer, esse lance de “killer whale” é uma mistura de taxonomia antiga com piração de gringo.
Dentre as mil coisas que eu não sabia sobre orcas (até ser completamente absorvida pelo assunto), talvez o que mais tenha me espantado tenha sido o lance dos ecótipos, e todo o tipo de questão que isso gera para esforços conservacionistas. Por exemplo, eu acabei lendo muito sobre a tentativa de readptação de Keiko - a orca-macho que foi usada para as filmagens de Free Willy - e como o fracasso da empreitada se deu principalmente por não terem tentado adaptar Keiko a um ecótipo que não era o seu. Ou seja, as orcas de um pod “estrangeiro” jamais a reconheceriam - a melhor chance que ela tinha de reecontrar algum tipo de comunidade seria rastrear parentes possíveis de seu próprio pod. Viveu apenas 27 anos, e morreu de pneumonia, ao se afastar demais de um dos barcos que a monitoravam, na Noruega - sem dúvida por sua saúde fragilizada após tantos anos no cativeiro e o estresse da liberdade. A história toda é uma tragédia, mas, se você tiver interesse, há um bom resumo aqui.
Eu confesso que escrevi esse título e, imediatamente, dei uma risada, porque é “O que é uma pessoa?” é, literalmente, o nível de pergunta “Antônio Abujamra para quebrar a cabeça da juventude”.
O nome alternativo desta seção era “Esopoposting”, rejeitado em função do cacófato. Mas fica aí o registro do que poderia ter sido - infelizmente palavras são difíceis, vocês sabem como é.
Eu já chego curtindo pq o título já me deu vontade de sorrir. Com licença que agora vou ler. Volto pra comentar de novo.
Eu amei demais este escrito divertido, de ótimo conteúdo e repleto de dicas preciosas. Conheci por meio do grupo da maravilhosa Aline Valek.