#04 - Os bichos e suas coisas
Sim, eu sei que dezembro não é o mês mais adequado pra volta da newsletter com um texto desses, mas cada um inventaria o ano que teve. De todo jeito: feliz natal, galera! Que 2025 nos seja gentil.
Tivemos conversas proibidas; tivemos trocas orais, somos obrigadas a contar histórias e mais histórias compostas apenas de fatos. Estamos treinando uma à outra em atos comunicacionais que mal entendemos. Somos, constitutivamente, espécies companheiras. Nós criamos uma à outra na carne. Um outro significativo uma para outra, em diferença específica, significamos na carne uma forte infecção de desenvolvimento chamada amor. Esse amor é uma aberração histórica e um legado natural-cultural.
Donna Haraway - O Manifesto das Espécies Companheiras - Cachorros, pessoas e alteridade signiticativa1
Às vezes é difícil, mas convém não esquecer: um bicho é um bicho. E porque um bicho é um sempre um bicho, do princípio ao fim, e não pode subitamente, transformar-se em outra coisa, só podemos esperar que um bicho faça as suas coisas de bicho durante o tempo que lhe é dado pelo seu relógio biológico, ainda que estendido pelos avanços contemporâneos da medicina e os confortos da civilização (que às vezes estão em consonância com a vontade do bicho, mas às vezes não).
Isto posto, uma gata é uma gata e uma mulher é uma mulher - felídeos e hominídeos tiveram seu último ancestral comum há provavelmente 65 milhões de anos. De lá pra cá, fica claro que as famílias divergiram, e que estamos falando de dois bichos profundamente diferentes no presente desta última madrugada compartilhada. As respirações pesadas no sofá, os soluços de uma, os estertores da outra, um edredom manchado de café e remédios, uma televisão sem som indiferente a ambas, lançando sua luz fria sobre a capa fina de poeira do móvel. Pela manhã, elas têm uma consulta marcada, porém apenas uma voltará para casa. Não ainda, contudo.
Agora são três da manhã. É possível que jamais deixe de ser três da manhã, pensa a mulher, as horas vem passando mais devagar ao longo do último mês, as sombras cada vez mais pegajosas nos cantos da sala. É possível que fiquemos presas para sempre neste limbo. E é um estado que ela deseja e rejeita, uma angústia que gostaria que terminasse mas que, ao mesmo tempo, prolongaria se fosse possível. Eu faria desta dor a minha casa inteira e não deixaria mais ninguém entrar, diz a mulher para a TV, para a gata, para a madrugada, para as sombras pegajosas, mas não tem certeza se acredita no que diz, ela não dorme direito há dez dias. Enquanto isso, a gata, deitada de lado, a encara, os olhos verdes com pupilas dilatadas desistiram há muito de piscar. Não parece estar sentindo dor agora, mas está claramente debilitada demais para se mover.
Se um bicho é um bicho e tudo o que um bicho pode fazer são suas coisas de bicho, a gata neste momento se define pela falta, pela negação daquilo que foi um dia: não pode mais correr, pular, perseguir e brigar com a outra gata (que neste momento dorme na área, em cima da máquina de lavar roupas, alheia ao drama que se desenrola na sala). Tampouco consegue armar esquemas para roubar comida do prato da mulher, acomodar-se ao sol para dormir durante a tarde, rolando de quando em quando para manter-se aquecida por inteira; e não possui sequer mais forças para afiar as unhas na cortina, caçar briquedos, folhas e pequenos insetos. E é por isto, diz a mulher a si mesma, uma e outra vez mais, como uma ladainha na qual precisa acreditar a todo custo, que ela adicionou uma tarefa extra às muitas tarefas de bicho que já desempenha: marcar a eutanásia da gata para a manhã seguinte.
A manhã que virá apenas se ultrapassarmos a barreira da madrugada, pensa a mulher, entre o horror e o desejo.
No dia anterior, por coincidência, a mulher havia lido a notícia sobre o poeta que foi para a Suíça para morrer. Ele deixou uma carta para amigos próximos, que foi compartilhada com a imprensa. Se essa era mesmo a vontade do poeta a mulher não soube, mas foi assim que, de repente, uma escolha pessoal e um drama íntimo acabaram virando o grande debate ético (e lunático) na ágora da Internet. Entre as inúmeras homenagens e condolências, não demorou muito para que começassem as especulações sobre quem teria coragem de fazer o mesmo - como se o suicídio assistido fosse uma escolha acessível à maior parte da população - para além de emergirem as opiniões não solicitadas daqueles que, por motivos mil, condenam a forma como outras pessoas conduzem a própria vida - ou, neste caso específico, a própria morte.
O poeta é também um bicho. E um bicho que, em decorrência do avanço da doença de Alzeihmer, não podia mais fazer as suas coisas de bicho: escrever poesia e ensaios, conviver ativamente com as pessoas que amava, ou sequer concentrar-se para ler. Imagine só, um bicho que leu a vida inteira, pensou a mulher, destacando esta tragédia específica em meio a tantas outras, escritas ou apenas presumidas, porque perder o prazer da leitura a assombra, sendo uma das coisas de bicho que ela mais valoriza - mesmo que tenha lido tão pouco este ano, entre a doença da gata e a própria doença, que a debilitou e a deprimiu.
(A depressão é a antessala da morte, porque faz com que todas as coisas de bicho virem atos absurdos, incompreensíveis a ele, que quer apenas desfazer-se de todos os movimentos para alcançar a imobilidade perfeita de tudo aquilo que não é bicho.)
O poeta, diante da perda da potência do que um dia foi, escolheu morrer antes que o seu sofrimento se tornasse insustentável. Em sua carta, escreveu: "Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”.
A gata não pode decidir por ela mesmo se quer viver ou morrer. Não sabemos se os gatos têm consciência da própria morte. E ainda que de fato conseguissem conceitualizar o que significa morrer e, para além disso, entendessem que é um processo que afeta todos os seres vivos, incluindo eles mesmos - o que é todo um nível subjetivo ainda mais complexo - , faltaria a eles uma linguagem que pudesse comunicar seus desejos metafísicos a nós que somos, em última instância, seus intérpretes, guardiões e companheiros. E que somos os únicos que podemos levá-los para o procedimento. (Carrascos, diz uma voz no fundo da mente da mulher, somos também seus carrascos).
A mulher finalmente decidiu pela gata, após consultar-se longamente com duas veterinárias e o próprio companheiro, que, felizmente, sempre esteve alinhado com a ideia de que um bicho é um bicho, e retirar tudo aquilo que é intrínseco do bicho é causar a ele um sofrimento que não pode ser aliviado com opióides. Aplasia medular, em decorrência da FeLV, o vírus da Leucemia Felina, foi o diagnóstico final. E não havia mais o que a Medicina Veterinária pudesse oferecer a todos os bichos envolvidos, exceto a morte indolor para um deles, em vez de uma agonia que poderia se arrastar por dias, e talvez algum alívio para os demais envolvidos.
Em uma das rotas comuns do cotidiano da mulher há uma igreja católica. A mulher foi criada dentro da religião durante a infância e parte da adolescência, mas há muito abandonou não apenas esta crença específica, mas também muitas outras ao longo do caminho. No entanto, a mulher continua gostando e frequentando igrejas quando não há cerimômias acontecendo, um pouco porque são espaços deslocados no tempo, que permitem um respiro em meio ao frenesi da cidade, um pouco porque aprecia a estética, e também as demonstrações da fé que sempre faltou a ela.
Mais cedo a mulher entrou na igreja. Já sabia do poeta e já havia selado o destino da gata, marcando a consulta para o dia seguinte. Não queria voltar para casa porque voltar para casa significava preparar-se para a última noite, fechar a porta do mundo sobre ambas e esperar em vigília que a madrugada viesse e se demorasse o tempo que fosse necessário. Assim, protelando o inevitável, a mulher subiu as escadas e sentou-se em um dos bancos ao fundo da nave.
Todo tipo de pessoa parece buscar refúgio em uma igreja de bairro no meio da tarde: de senhoras carolas da congregação a trabalhadores do comércio em pausa mexendo em seus celulares, jovens rezando fervorosamente por alguma causa coletiva, alguns turistas tirando fotos, uma família pai-mãe-três-filhos acendendo velas, um bêbado ocasional que cochila sentado e o segurança ainda está decidindo se é inofensivo ou não. No centro do altar, talvez longe demais, vigia a todos a figura de São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis.
A mulher não sabe rezar. Quer dizer, ela sabe as rezas, mas falta a ela a convicção. No entanto, acabou vendo graça por ter invadido justamente a casa do santo com a fama de milagreiro para os mais desesperançados; no fim das contas, não poderia haver interlocutor melhor. Pôs-se então de joelhos.
A mulher não se importa realmente se ele possui ou não poderes sobrenaturais, mesmo porque não pretende pedir pela vida da gata: se ambas sobreviverem ao dia de amanhã a eutanásia vai acontecer. Tampouco pensa em discutir as implicações éticas de ser a responsável pela morte da gata com um homem que nasceu no primeiro século depois de Cristo na Galiléia porque imagina que, mesmo ouvindo preces todo dia o dia inteiro mundo afora o santo certamente ainda não está a par das discussões mais contemporâneas a respeito da consciência e direito de inteligências não-humanas.
No entanto, a mulher queria agradecer. É a coisa que ela mais sente falta por não ter uma religião: não se importa muito em não ter a quem pedir, mas faz a ela uma falta tremenda não ter a quem agradecer. E, na ausência de um símbolo adequado para o que ela precisa neste momento - a ciência infelizmente não é dada à metafísica e à poesia - o santo milagreiro vem a calhar. Mesmo que o milagre em si seja completamente natural, fruto de linhas específicas da evolução da vida na Terra, de processos de domesticação e uma série de coincidências, encontros e desencontros através de gerações e piscinas genéticas que um dia levaram aquela gata específica, em uma caixa de papelão de um ferro de passar roupa, até a casa da mulher.
E aí dois mundos se tocaram e conviveram e estabeleceram relações de trocas e sua própria linguagem no limite da alteridade, e inventaram o amor possível em terrenos tão familiares e tão alienígenas, e jogaram jogos e se conheceram como ninguém e agora esta relação tão importante vai simplesmente terminar e ninguém se importa porque ninguém mais conhece a gata como a mulher, é um luto muito particular, e por isso tão doloroso, mas ainda assim a mulher quer, não, a mulher precisa agradecer. E a mulher também gostaria de perguntar ao santo se ele alguma vez amou algum bichinho, um cachorro, um burro, um cavalo, e se sofreu como a mulher estava sofrendo agora, mas ele nada respondeu. O santo é uma figura de gesso, tinta e verniz, mas o santo já foi um bicho um dia. E a mulher sentiu uma ternura imensa por ela mesma, pela gata, pelo poeta, pelas pessoas frequentando a igreja, pelo santo lá na Galiléia com seu burrinho hipotético. Levantou-se, os joelhos doídos, e foi embora.
O relógio da TV marca 4:57.
A gata finalmente ressona no sofá.
Vencemos a madrugada, a mulher pensa, enquanto acende um cigarro na varanda. Logo vai amanhecer. Vai ser um dia bonito para morrer.
O fim da vida
Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.
Antônio Cícero2
Tradução de Pê Moreira. São Paulo: Bazar do Tempo, 2021
In: Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012
É até injusto eu tentar te oferecer alguma palavra depois deste texto tão lindo e triste (e lindo na tristeza que ele representa), então aceite ao menos minhas lágrimas. De gateira para gateira, que sofre igualmente por bichos (e passou perrengue com o próprio gato-bruxo semanas atrás), te deixo um abraço apertado. Viva a memória da gata Entropia. ❤
Que texto lindo! Chorei pensando em todos os bichos que amo e algum dia também vão partir. Obrigada por partilhar suas palavras 🤍